segunda-feira, 24 de outubro de 2016
Piloto
O Piloto apareceu na minha pensão em Aveiro. Entrou a cavalo e passeou-se pelos corredores com a cabeça baixa, para não ser reconhecido, como se um tipo com ar de caubói (até lenço no pescoço trazia) pudesse passar despercebido. Chegou ao fim do corredor (eu estava no piso de cima, consegui ver tudo com clareza), olhou cabisbaixo para os lados, deu meia volta, atravessou novamente o corredor vagarosamente e saiu pela porta por onde 3 minutos antes havia entrado. Não houve azáfama, toda a gente o viu e todos continuaram seu ritmo lento de se mover pelo espaço.
Enquanto me dirigo para o quarto (é capaz de ser boa ideia antes que isto dê para o torto) constato que estou a ser preconceituosa. É que eu devo ser a única portuguesa que não sabe a cara do piloto (estou fora do país e sou mais de ouvir as notícias) e em Portugal os 'most wanted' não aparecem nos pacotes de leite. Estou claramente a fazer a generalização piloto, caubói, Malboro man, é tudo a mesma coisa - nunca fiar!
Quando chego ao quarto, reparo que infelizmente este não tem paredes, mas antes umas grades baixas, estilo coreto, e que tem até a forma arredondada. Reparo também que, como é costume, é um quarto partilhado e assim, a grosso modo, estamos lá cerca de 15 e um cão. Surpreendentemente, não há camas. As única peças de mobiliário são uns bancos espalhados, aleatoriamente, pelo espaço vazio. Desvio com jeitinho o cão, e sento-me ao lado do velho que deve ser seu dono. Olho à volta. Está tudo como eu, à espera que aconteça alguma coisa, à excepção do cão que, depois do meu empurrão, já encontrou novo espaço e está novamente enrolado a dormir. É então que vemos o caubói subir as escadas. Desta vez sem cavalo, mas exactamente ao mesmo ritmo pesaroso. Esta coisa de não haver paredes dá para os dois lados - se por um é óptimo, porque o vemos mal ele chega ao primeiro piso, por outro ele também está de olho em nós mal põe o pé no último degrau das escadas. Obviamente, ou não fosse eu uma tipa cheia de sorte, ele dirige-se para o meu quarto. As pessoas começam encostar-se umas às outras. Uma mãe abraça uma criança pequena. Eu encosto-me um pouco mais ao cão que apenas levanta a orelha e a pálpebra direitas e me olha de soslaio como quem diz não sei o que se está a passar, mas já estás a abusar. Olho para o velho - olha para os sapatos rotos sem vontade nenhuma de daí tirar os olhos. Tento elaborar, sem levantar sobrolho, um discreto plano de fuga, mas este é sempre mais difícil em áreas pi ao quadrado, sem esquinas obscuras ou cantos refundidos, e, ainda antes ainda de me imaginar a fazer uma pirueta e um mortal à retaguarda por cima das grades do quarto, ouço uma voz metálica a chamar baixinho, com sotaque estranho 'Helêna'. Pára-se-me o coração. Já fui! É sempre a mesma coisa! Olho para o caubói e reparo que também ele está com um ar perdido, à procura da origem da voz. Não me mexo, pode ser que ninguém saiba que me chamo Helena ou que haja outra 'Helêna' na sala. Entretanto, o 'Helêna' ouve-se outra vez, mais forte, e, desta vez, toda a gente olha para mim.
Fecho os olhos com força e torno-me religiosa por uns segundos a pedir a dEUS que não me mate já. Abro os olhos e, felizmente, acordo.
A senhora R chama outra vez o meu nome pelo intercomunicador. Salto da cama e corro para a lhe dar o braço. São 6 da manhã na Inglaterra. Tudo certo. dEUS existe e safou-me desta.
Texto de Helena Ferreira Gomes (my daughter)
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