sábado, 8 de outubro de 2016

Lembranças do Olimpo (20)


Hipólito andou ao longo da orla do mar, subiu as dunas, depois uns rochedos e meteu-se pela veiga até à povoação mais próxima. Uma boa hora e meia com passo estugado.
Levara na cabeça um Panamá fino, que o protegia daquele forte sol de Setembro, mas esquecera a água e, no fim do caminho, a sede obstinava-o para uma qualquer fonte ou Café onde a pudesse satisfazer.
A terriola parecia deserta e, não fora o ruído de um prato a partir-se, passaria pela tasca sem reparar que estava aberta.

Entrou na semi-obscuridade da sala. A mobília de madeira maciça lembrava os anos cinquenta do século passado. Não havia moscas e o ar era fresco e isso reconfortou-o. Atrás do balcão o tasqueiro vociferava enquanto apanhava os cacos do chão.
- Bons dias!, disse o médico. - Está aberto?
- Bons dias!, respondeu o homem, ainda de pá na mão. – Pode entrar! Desculpe este meu praguejar. mas de há um mês para cá acontecem coisas estranhas nesta casa! Lamentou-se enquanto despejava o lixo no caixote. - Olhe que hoje já me caíram da parede três pratos, e sem ninguém lhes tocar, nem passar uma corrente de ar! Ontem dei com a torneira da cerveja de pressão aberta e foi-se um barril que tinha aberto momentos antes!
Hipólito sorriu e tentou amenizar-lhe a irritação. -Tenha calma que há dias assim! Andamos preocupados com qualquer coisa e nem reparamos no que fazemos! Se ainda há cerveja que tenha sobrado, podia arranjar-me uma caneca, por favor!, pediu o médico. - Está um calor que lembra Julho! Se não encontrava aqui este oásis, creio que caía na próxima valeta!, exagerou.

O vendeiro acercou-se do balcão, serviu-lhe um pratinho de tremoços e a bebida, que médico despachou de um trago.
- Está um calor infernal! Qualquer dia o deserto do Sahara entra pela península ibérica e vamos ter de andar de camelo e beber chá de menta!, gracejou.
Depois de um Ahh reconfortante, Hipólito pediu outra caneca, pegou num tremoço e anotou: - Vejo que aqui se mantêm os hábitos antigos de adivinhar a vontade do cliente!
- É regra desta casa pôr sempre um petisco para picar, quando se serve uma bebida. Uma orelha de porco de coentrada, um polvo à galega, umas favas com chouriço, umas fatias de queijo ... qualquer coisa bem apurada, mas, neste último mês, como lhe disse, temos andado às voltas com uma série de acidentes, e só temos tido tempo para tremoços, azeitonas e favas secas! A minha mulher até diz que temos a casa assombrada!

Hipólito dispôs-se à conversa e o taberneiro prosseguiu:
- Ele são ruídos estranhos à noite, ferramentas que desaparecem de um local para aparecerem dias depois onde menos se espera, portas que batem sem ninguém estar por perto e tudo isto desde que a minha irmã, que ficou viúva, veio morar connosco. A gente até brinca com ela, mas lá que coincidiu, isso ninguém pode negar!
- E no meio dessas contrariedades, aconteceu alguma que fosse um grande mal?, insistiu o médico, que de repente assumira o caso como se fosse um detective.
- Coisa grave, … que me lembre, não aconteceu. Mas têm sido tantas fora do normal, que até parece bruxedo!, respondeu o homem, com uma vaga esperança numa solução.

O médico levantou-se para se certificar que os pratos pendurados na parede estavam bem fixados e que os que tinham caído tinham o mesmo tipo de suporte. Depois, voltou ao balcão, bebeu dois goles de cerveja e atreveu-se a mais uma pergunta. - Desculpe a minha curiosidade, mas sinto que talvez possa ajudar a descobrir o que o atormenta. Onde residia a sua irmã antes de vir para cá?
O tasqueiro, levantou o olhar, surpreendido: - Vivia em Vimioso, em Trás-os-Montes! O que é que pensa que poderá estar por detrás disto?
O médico, pegou-lhe no braço e convidou-o a sentar-se na mesa mais próxima, não fosse a estranheza da notícia causar-lhe uma sulipampa. Depois, pôs o seu melhor ar de entendido e disse-lhe, do mesmo modo como daria a notícia de uma doença não fatal, mas a merecer grandes cuidados.
- Tudo aparenta de que se trate de um trasgo que tenha seguido a sua irmã. Não se preocupe que não vai passar disto, desde que não dê sinal de estar irritado. Se o tolerar, passado um tempo, ele vai para outra casa, provocar outro.

- É capaz de ser isso!, confirmou o pobre homem. - A minha mulher numa destas noites de lua cheia, quando veio cá abaixo ao estabelecimento, por causa de um ruído, pareceu-lhe ter visto qualquer coisa, como um rato vermelho, a esconder-se por detrás do balcão!
- Então é quase certo! Eles vestem-se de vermelho e usam um gorro de bico na cabeça. Se o tivesse visto coxear da perna direita, tínhamos a confirmação. Eles vivem mais para o interior do país, mas muitas vezes seguem as pessoas de lá, nas suas deslocações. Só querem divertir-se!
Há uns anos tive um lá em casa. Escondia as chaves do carro, fazia desaparecer uma meia de cada par, comia as sobras dos bolos do frigorífico e punha nódoas na roupa lavada. Deve-me ter perseguido num dia em fui com o meu neto ver um arco-íris. Como deve saber, eles fabricam uma substância parecida com o ouro, que colocam no pote que está no fim do arco e que desaparece quando a gente se aproxima. Ficou uns dois meses connosco, mas como a minha casa tem muita luz e eles preferem sótãos e adegas, foi-se embora!
No seu caso, como o seu estabelecimento é pouco iluminado, se quiser ver-se livre dele mais depressa, tem de o desafiar a fazer uma tarefa impossível, como trazer uma cesta de água do mar, clarear uma ovelha negra ou outra coisa do género. Como ele acha que sabe fazer tudo, vai ficar exausto a tentá-lo. Então fica com o orgulho ferido, sai e não volta. 

- Obrigado pela informação! Bendita a hora em que entrou na minha casa! Já me tinha esquecido da existência desses seres. Quer mais um fino ou prefere uma sande de presunto?. O taberneiro estava visivelmente satisfeito. Pelo menos já sabia que se não tinha que se preocupar e que se mostrasse irritação a coisa iria de mal a pior.

O médico agradeceu, aceitou uma garrafa de água para o regresso e despediu-se. Depois, meteu-se pela estrada, a pensar se não haveria zanganitos destes na política. Aquela candidatura de última hora de Kristina Georgieva a Secretário-Geral das Nações Unidas e a de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tinham características que lembravam as suas traquinices …

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