Boa noite! Então hoje que temos?
Boa noite doutor! Para já tem 4!. O primeiro é na Rua de Cedofeita nº X, o 2º é na Rua de Gondarém nº Z, que fica nas traseiras da Avenida Brasil na Foz do Douro, outro é um bocadinho mais para a frente na Rua da Trinitária, nº Y e o outro é no Bairro do Aleixo.
Este Bairro tem má fama, não devia chegar lá muito tarde, talvez devesse até começar por aí.
Boa sorte!”
-“ Obrigado e boa noite!”
Entro no carro e confirmo no mapa da cidade o percurso a fazer.
Decido começar por Cedofeita que está aqui ao pé e o Bairro fica para o fim. Assim escuso de andar para a frente e para trás. Está uma noite calma de verão e anda muita gente na rua.
Não tenho problema em encontrar a casa e um lugar para estacionar perto, em cima do passeio. Ponho o cartaz de “Médico em Serviço Urgente”, ando uns passos e toco à porta de uma casa antiga.
Atende-me uma senhora de cerca de 60 anos, bem vestida e muito afável. Enquanto caminhamos para o quarto diz-me que a doente tem 86 anos, que é francesa residente há muito em Portugal, que veio há pouco de um internamento de um mês no Hospital de Sto António e que desde então tem estado na cama alimentada por uma sonda. Ontem ficou de novo com febre alta e mais ruído respiratório.
Aproximo-me. Está péssima. Quase só pele e osso, com frequência respiratória aumentada, sem pulso e sem reagir a estímulos dolorosos.
Aparece uma rapariga que presumo ser filha. Pergunto se são familiares.
Não são! A doente não tem família próxima. Eles são a família amiga de longa data, que lhe tem dado apoio nos últimos anos.
A medo pergunto se alguma vez a doente lhes terá falado das suas opções sobre a morte e olho para elas à espera de um olhar que me permita deixar a senhora morrer em paz, sem a agressão do reenvio para o Hospital! Estão disponíveis para aceitar o inevitável, mas não queriam estar sós nesta decisão e foi por isso que chamaram.
Acertamo-nos. Receito um antipirético, prognostico um desenlace fatal a curto prazo e despeço-me, disponibilizando-me para voltar, caso haja necessidade.
Agora rumo à Foz do Douro. Até sabe bem andar de carro a esta hora com o vidro aberto e o vento na cara. É um instante.
Procuro o prédio que me parece ser de gente rica. Toco a campaínha, identifico-me e subo de elevador até ao 4º andar. Vem a empregada receber-me. Passo por corredores de uma casa recheada de vidros e móveis escuros e brilhantes até ao quarto da empregada.
Já entendi! Não é ninguém da casa que está doente.
É o marido da empregada que chegou de uma viagem de longo curso num camião e que parou ali por não ter forças para mais. Arde em febre (41ºC) e não tem aparente foco de infecção! Faço mais umas perguntas, encostado à parede ao lado da cama a tentar perceber contágio ou alimento que possa ter veiculado agente infeccioso.
Enquanto aguardo as respostas que o homem custa a lembrar, entra de rompante no quarto um dos meus professores da Faculdade de Medicina.
Com passo decidido dirige-se ao doente, ignorando-me. Põe-lhe uma mão na nuca e flecte-a. Dói? Não! E assim como entra sai! Sem mais palavras e sem mais olhares!
A empregada, constrangida, vira-se para mim :
- É o meu patrão! É professor no Hospital!
- Eu sei! Eu conheço-o! Talvez não me tenha visto!
E estupefacto pergunto:
-“Se tinha aqui um médico qual é a ideia de chamarem o Permanente?”
-“ É por causa da Baixa!”
-“Ah é!!!??? Espanto-me.
-“Se é para isso, o problema está resolvido, que no Permanente não se passam Baixas! E como o professor sabe melhor que fazer que eu, não estou aqui a fazer nada!! Boa noite, e estimo as melhoras!”
Despeço-me incrédulo com toda a situação, e à saída vislumbro de soslaio um sofá na sala donde saem umas pernas, uns papéis e umas mãos.
Será que o homem não me viu? Será que a má educação pode chegar a tanto?
Vamos embora que hoje o forno não está para rosquilhos! São quase 23:00h e eu quero chegar ao Bairro do aleixo antes da meia-noite.
Procuro agora no mapa a Rua da Trinitária. É já ali à frente. Paro a meio e sigo a pé à procura do nº de porta. Bato 2 vezes e de imediato ouço o ladrar insistente de um cão mesmo atrás da porta e a voz de uma mulher – “Leão! Leão! Anda cá! Aqui!. É o médico?
Respondo: -“Sim! Agradeço que prenda o cão!” e seguro no puxador da porta a impedir a senhora de a abrir. O cão mantém-se a ladrar mais longe!
Oh! Sr. Doutor! Espere um bocadinho que eu vou ver se o prendo!”
Espero e passados minutos deixo de ouvir o cão. A porta abre e vem uma Sra. com ar de reformada a viver de escassa pensão.
Pergunto: -“Prendeu o cão?”
-"Não! Ele não é meu Sr. Dr. , é da doente que tem este quarto alugado, e pôs-se debaixo da cama dela e não sai de lá! Ele só ladra, não morde, e eu não o consigo apanhar. Entre Sr. Dr., que ele não faz mal! "
Arrisco e entro no quarto. O cão rosna debaixo da cama da doente.
-“ É a minha companhia!”
- “Está bem! Mas ele não está com ar amigo e se acha que eu lhe estou a fazer mal, traça-me as pernas! Se me não leva a mal, ajoelho-me aqui na cama durante a consulta!”
Ouço a história, palpo, ausculto e receito como quem reza, enquanto o bicho rosna. Finda a consulta despeço-me e saio às arrecuas com os olhos fitos no chão por baixo da cama e a pasta em frente dos joelhos. Boa noite!
Não o vi, mas aquele ladrar pesava 50Kg.
É meia-noite e aí vou eu para o Bairro do Aleixo. Conheço a torre pelo que me não é difícil dar com ela. Paro à porta, entro e toco no botão de chamada do elevador. Não tem luz. Subo as escadas numa semi-escuridão, apoio-me no corrimão e sinto-o sujo de um líquido oleoso que escorre do tubo de descarga do lixo que está atafulhado de sacos. Mudo para o lado de fora da escada. Abro a pasta e pego na lanterna de ver gargantas para ver onde ponho os pés. Não está ninguém nos átrios dos pisos por que vou passando e tenho que ir até aos 6º piso.
Hoje é dia mau!
Chego. Bato á porta.
-"É o médico?"
-" Sim!"
Vem abrir uma rapariga de 16 anos em pijama:
-"É a minha avó que tem uma dor de barriga e vomitou muito!"
Depois vem uma mulher gorda que deve ser a mãe da rapariga, de robe ás ramagens com ar de ter saído da cama naquele momento. Levam-me até ao quarto da doente que já está melhor depois de ter vomitado.
Faço uma observação sumária, pergunto como é aquilo dos elevadores e das escadas, ouço as queixas contra a “Câmara que não liga” e contra “os vizinhos que são uns porcos” e saio em dez minutos.
Paro numa cabine telefónica e ligo para o telefonista:
-"Há mais?"
-"Não! "
-"Olhe lá, ninguém o avisou do estado em que está o Bairro do Aleixo?"
-"Eu tenho de fazer domicílios com cães soltos?"
UM CRIME OITOCENTISTA
Há 7 horas