domingo, 27 de abril de 2008

Permanente 3 - Hoje é dia mau.

Boa noite! Então hoje que temos?
Boa noite doutor! Para já tem 4!. O primeiro é na Rua de Cedofeita nº X, o 2º é na Rua de Gondarém nº Z, que fica nas traseiras da Avenida Brasil na Foz do Douro, outro é um bocadinho mais para a frente na Rua da Trinitária, nº Y e o outro é no Bairro do Aleixo.
Este Bairro tem má fama, não devia chegar lá muito tarde, talvez devesse até começar por aí.
Boa sorte!”
-“ Obrigado e boa noite!”

Entro no carro e confirmo no mapa da cidade o percurso a fazer.
Decido começar por Cedofeita que está aqui ao pé e o Bairro fica para o fim. Assim escuso de andar para a frente e para trás. Está uma noite calma de verão e anda muita gente na rua.

Não tenho problema em encontrar a casa e um lugar para estacionar perto, em cima do passeio. Ponho o cartaz de “Médico em Serviço Urgente”, ando uns passos e toco à porta de uma casa antiga.
Atende-me uma senhora de cerca de 60 anos, bem vestida e muito afável. Enquanto caminhamos para o quarto diz-me que a doente tem 86 anos, que é francesa residente há muito em Portugal, que veio há pouco de um internamento de um mês no Hospital de Sto António e que desde então tem estado na cama alimentada por uma sonda. Ontem ficou de novo com febre alta e mais ruído respiratório.
Aproximo-me. Está péssima. Quase só pele e osso, com frequência respiratória aumentada, sem pulso e sem reagir a estímulos dolorosos.
Aparece uma rapariga que presumo ser filha. Pergunto se são familiares.
Não são! A doente não tem família próxima. Eles são a família amiga de longa data, que lhe tem dado apoio nos últimos anos.
A medo pergunto se alguma vez a doente lhes terá falado das suas opções sobre a morte e olho para elas à espera de um olhar que me permita deixar a senhora morrer em paz, sem a agressão do reenvio para o Hospital! Estão disponíveis para aceitar o inevitável, mas não queriam estar sós nesta decisão e foi por isso que chamaram.
Acertamo-nos. Receito um antipirético, prognostico um desenlace fatal a curto prazo e despeço-me, disponibilizando-me para voltar, caso haja necessidade.

Agora rumo à Foz do Douro. Até sabe bem andar de carro a esta hora com o vidro aberto e o vento na cara. É um instante.
Procuro o prédio que me parece ser de gente rica. Toco a campaínha, identifico-me e subo de elevador até ao 4º andar. Vem a empregada receber-me. Passo por corredores de uma casa recheada de vidros e móveis escuros e brilhantes até ao quarto da empregada.
Já entendi! Não é ninguém da casa que está doente.
É o marido da empregada que chegou de uma viagem de longo curso num camião e que parou ali por não ter forças para mais. Arde em febre (41ºC) e não tem aparente foco de infecção! Faço mais umas perguntas, encostado à parede ao lado da cama a tentar perceber contágio ou alimento que possa ter veiculado agente infeccioso.
Enquanto aguardo as respostas que o homem custa a lembrar, entra de rompante no quarto um dos meus professores da Faculdade de Medicina.
Com passo decidido dirige-se ao doente, ignorando-me. Põe-lhe uma mão na nuca e flecte-a. Dói? Não! E assim como entra sai! Sem mais palavras e sem mais olhares!
A empregada, constrangida, vira-se para mim :
- É o meu patrão! É professor no Hospital!
- Eu sei! Eu conheço-o! Talvez não me tenha visto!
E estupefacto pergunto:
-“Se tinha aqui um médico qual é a ideia de chamarem o Permanente?”
-“ É por causa da Baixa!”
-“Ah é!!!??? Espanto-me.
-“Se é para isso, o problema está resolvido, que no Permanente não se passam Baixas! E como o professor sabe melhor que fazer que eu, não estou aqui a fazer nada!! Boa noite, e estimo as melhoras!”
Despeço-me incrédulo com toda a situação, e à saída vislumbro de soslaio um sofá na sala donde saem umas pernas, uns papéis e umas mãos.
Será que o homem não me viu? Será que a má educação pode chegar a tanto?
Vamos embora que hoje o forno não está para rosquilhos! São quase 23:00h e eu quero chegar ao Bairro do aleixo antes da meia-noite.

Procuro agora no mapa a Rua da Trinitária. É já ali à frente. Paro a meio e sigo a pé à procura do nº de porta. Bato 2 vezes e de imediato ouço o ladrar insistente de um cão mesmo atrás da porta e a voz de uma mulher – “Leão! Leão! Anda cá! Aqui!. É o médico?
Respondo: -“Sim! Agradeço que prenda o cão!” e seguro no puxador da porta a impedir a senhora de a abrir. O cão mantém-se a ladrar mais longe!
Oh! Sr. Doutor! Espere um bocadinho que eu vou ver se o prendo!”
Espero e passados minutos deixo de ouvir o cão. A porta abre e vem uma Sra. com ar de reformada a viver de escassa pensão.
Pergunto: -“Prendeu o cão?”
-"Não! Ele não é meu Sr. Dr. , é da doente que tem este quarto alugado, e pôs-se debaixo da cama dela e não sai de lá! Ele só ladra, não morde, e eu não o consigo apanhar. Entre Sr. Dr., que ele não faz mal! "
Arrisco e entro no quarto. O cão rosna debaixo da cama da doente.
-“ É a minha companhia!”
- “Está bem! Mas ele não está com ar amigo e se acha que eu lhe estou a fazer mal, traça-me as pernas! Se me não leva a mal, ajoelho-me aqui na cama durante a consulta!”
Ouço a história, palpo, ausculto e receito como quem reza, enquanto o bicho rosna. Finda a consulta despeço-me e saio às arrecuas com os olhos fitos no chão por baixo da cama e a pasta em frente dos joelhos. Boa noite!
Não o vi, mas aquele ladrar pesava 50Kg.

É meia-noite e aí vou eu para o Bairro do Aleixo. Conheço a torre pelo que me não é difícil dar com ela. Paro à porta, entro e toco no botão de chamada do elevador. Não tem luz. Subo as escadas numa semi-escuridão, apoio-me no corrimão e sinto-o sujo de um líquido oleoso que escorre do tubo de descarga do lixo que está atafulhado de sacos. Mudo para o lado de fora da escada. Abro a pasta e pego na lanterna de ver gargantas para ver onde ponho os pés. Não está ninguém nos átrios dos pisos por que vou passando e tenho que ir até aos 6º piso.
Hoje é dia mau!
Chego. Bato á porta.
-"É o médico?"
-" Sim!"
Vem abrir uma rapariga de 16 anos em pijama:
-"É a minha avó que tem uma dor de barriga e vomitou muito!"
Depois vem uma mulher gorda que deve ser a mãe da rapariga, de robe ás ramagens com ar de ter saído da cama naquele momento. Levam-me até ao quarto da doente que já está melhor depois de ter vomitado.
Faço uma observação sumária, pergunto como é aquilo dos elevadores e das escadas, ouço as queixas contra a “Câmara que não liga” e contra “os vizinhos que são uns porcos” e saio em dez minutos.

Paro numa cabine telefónica e ligo para o telefonista:
-"Há mais?"
-"Não! "
-"Olhe lá, ninguém o avisou do estado em que está o Bairro do Aleixo?"
-"Eu tenho de fazer domicílios com cães soltos?"

4 comentários:

wolverine disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
wolverine disse...

ajoelho-me aqui na cama..."
"...saio às arrecuas com os olhos fitos no chão por baixo da cama e a pasta em frente dos joelhos."

Tsss, Tssss,...
homem que é homem tinha sacado da pochete uma seringa de diazepam com uma bela duma agulha acoplada e mostrado ao canito com quantos paus se faz uma canoa.

50 kg de potência canina?? e estava escondido debaixo da cama? não seria um caniche ou, vá lá, um cocker com mau feitio

Guilherme de Carmo disse...

Estou a gostar de ler as suas histórias "permanentes". A propósito dos dissabores que uma visita domicíliaria pode causar, veio-me à memória uma outra história de uma enfermeira dos cuidados de saúde primários.

Simples desabafo do dia a dia de um enfermeiro nos domicílios

A casa dos Outros
A D. Maria tem 47 anos... e um cancro do ovário. O marido, já reformado,quis satisfazer-lhe o desejo de não morrer no hospital.
Têm uma filha, a acabar o curso na universidade: boa aluna, em altura de exames... precisa de estudar e a sua mãe está a terminar os seus dias de vida no quarto ao lado.
A D. Maria está em cuidados paliativos... e sabe disso! Já não quer comer, bebe apenas alguns goles de água. Tem um soro para que lhe possamos dar a medicação. Tem uma perfusão permanente de morfina,cuja eficácia não é total.
A barriga... como descrever? Tem uma colostomia, que mal funciona... está inchada, como um balão que vai rebentar.. e de facto, começa a rebentar: abrem-se fístulas espontaneamente e as fezes saem por todo o lado.
O cheiro? Não consigo descrever! O corpo? Pele e osso, para ser mais exacta!
Há metástases no fígado, no pulmão... a respiração é ofegante... já lá vão 5 semanas...
Diariamente desloco-me a casa da D. Maria, duas ou três vezes: para dar medicação, para cuidar daquela barriga... para falar com ela, para dar o apoio possível ao marido que tenta fazer o que sabe e o que pode.
O sofrimento? É grande... de todos!
Mas eu sou enfermeira: não é suposto que me seja difícil ver o sofrimento dos outros!
Tudo se torna mais difícil quando estou a sós com a D. Maria, que me agarra na mão e me pede insistentemente... que termine com a vida dela!
Os apelos são cada vez mais frequentes, mais desesperados: 'Por favor! Se tem compaixão de mim, injecte-me qualquer coisa para terminar de vez com esta agonia! Pela sua felicidade, por favor, acabe com a minha vida...'
E eu tenho compaixão... mas nada posso fazer! A dor não se consegue controlar, é impossível cuidar dela sem lhe provocar ainda mais dores?
O que faz uma enfermeira?
Vai-se embora, para casa, a sentir-se inútil... A sentir-se incapaz... A ouvir repetidamente aquele apelo... e a desejar, embora lhe custe muito, que a eutanásia fosse possível! Mas, se fosse possível... e a praticasse, como iria para casa?
Mas para quê falar disto?... Os enfermeiros não têm sentimentos!
Saio dali, continuo o meu trabalho domiciliário: agora entro numa barraca, onde chove dentro, onde há ratos, pulgas, lixo... onde o cheiro nos faz perder o apetite... O Sr. José tem 87 anos e vive sozinho. Tem uma úlcera varicosa. Tenho que fazer o penso. Não há água... nem sequer as mãos posso lavar. Passo-as por álcool à saída e lavo-as na casa do próximo utente.
Chove desalmadamente. Volto para o carro, pelo meio da lama. Carrego as malas do material para os cuidados.
Mas para quê falar disto?... A minha profissão não é penosa!...
Próxima paragem: D. Joaquina, 92 anos, vive numas águas furtadas, 5ºandar, sem elevador.
Subo as escadas de madeira, apodrecidas, obscuras, com medo que alguma tábua se parta. Carrego com as malas do material...
A D. Joaquina vive com uma irmã, naquele espaço exíguo. Teve uma trombose. Tem úlceras de pressão. O tecto é baixo, inclinado, a cama está encostada à parede. Para lhe prestar cuidados tenho que me pôr de joelhos no chão e ficar inclinada. Quando me tento endireitar as minhas costas doem... tenho as pernas dormentes... pego nas malas, desço as escadas... continua a chover...procuro o carro que tive que estacionar a 500 metros!
Mas, para quê falar disso? Os enfermeiros não se queixam...
Próximo desafio: a Helena! Toxicodependente... tem SIDA, continua a consumir... com sorte,ainda lá encontro o traficante em casa... mas as enfermeiras não têm medo!
Continuo: o Sr. Manuel é diabético, divorciado, tem 50 anos, foi amputado de uma perna, vive sozinho num 3º andar. Há 2 anos que não sai de casa: como fazer? Das poucas pessoas, com quem convive, são as enfermeiras! Precisa de conversar... como lhe dizer que ainda tenho mais 4, ou 8 pessoas e que não tenho tempo para estar ali a ouvi-lo?
Mas para quê falar disso? Os enfermeiros só dão injecções e fazem pensos... tudo o resto é supérfluo!
Para quê falar da solidão do outro, da minha impotência, do pedido de eutanásia, da chuva, do frio, do sol, do calor, do mau cheiro, das minhas dores nas pernas, do material do penso a conspurcar o meu carro (a seguir vou buscar a minha filha à escola!), das dores nas costas, do medo, da insegurança, do ventre desfeito, da tristeza, da compaixão...
Não, a penosidade e o risco devem ser uma ilusão minha...
Não, as enfermeiras não choram!
Mas sabem?... as lágrimas que mais doem são aquelas que não correm!'(Célia Nunes)

Abraço
G.

capitão disse...

Guilherme!
Isso faz parte da profissão! As margens são sempre difíceis de gerir.
A enfermeira em causa vai ter de aprender a viver com situações destas e em maior número, e colaborar para que a sociedade em geral não coloque todo o ónus do apoio nos cuidados de saúde, que não podem (nem devem) assumir funções de assistência social.
Muita dessa miséria que relata está dependente da desagregação social e não de maus cuidados de saúde, embora estes tenham ineficiências inaceitáveis.
Os Ingleses têm actualmente 1.000 idosos com mais de 100 anos e contam ter dentro de 10 anos 10.000. Uma família chinesa há 20 anos era constituída por 1 avô, 2 pais e 4 filhos e agora é constituída por 4 avós, 2 pais e 1 filho.
O impacto destas alterações demográficas já se faz sentir nas nossas Instituições e há movimentos sociais importantes para minorar os seus efeitos. Os Serviços de Saúde são responsáveis por uma parte da resposta.