sábado, 4 de setembro de 2010

A Justiça

Foi assim que Miguel Torga pôs a Justiça num conto anterior a 1941, data da 1ª edição dos "Contos da Montanha"

Por mais ordeiro que um povo seja, sempre há coisa. É uma asneira que se diz, um marco que o arado arranca, uma cabra lambisqueira que salta à vinha de alguém, duas maçãs que uma criança rouba. Mas tudo isso não vale nada. As mulheres engaleiam-se, o falatório no tanque anima-se, discute-se nas cavas, e acaba tudo em águas de bacalhau. No tempo do Leonardo, porém, Deus nos livrasse! Aquele cobardola só sabia dizer:
- Embargo! Ou fazes o que eu digo, ou vou à vila e enrolo-te em meia folha de papel selado.

- Se tem assim tanta razão, salte! Salte para aqui, e tiram-se as teimas de homem para homem.
Olha lá não saltasse! Metia o rabo entre as pernas, e tribunal.
Ora o que a justiça quer é comer. Certo e sabido: vai-se ter com o Dr. Valério a Murça, e é logo:
- Você está cheio de razão, alma de Deus! Ponha a questão, que não há ninguém que lha perca. Se quiser, passe-me uma procuração, deixe trezentos mil réis para preparos, e o resto é comigo.
Um céu aberto. Até parece que a gente já está a ouvir o juiz. Mas depois é que são elas! Começa um moedoiro de dinheiro, que não há bolsa que chegue. O advogado só diz:
- Então agora, que isto vai tão bem encaminhado, é que você se quer compor?!
E cantem para aqui mais cinco notas! O pior é que daqui a um mês, zás: uma cartinha. "Senhor Fulano, é favor comparecer no meu escritório". Desce a gente de escantilhão pela serra abaixo, numas ânsias a cuidar mil coisas. E o que há-de ser? "Tenha paciência, isto não anda sem a mola real ..."
Até que chega o dia da audiência. Aí, então, é como quem quer livrar um filho. Presente a este, presente àquele, tia Preciosa, pelo amor de Deus, diga a verdade e beba mais uma pinga. E para nada, afinal de contas, porque o outro advogado, que é um bandalho da mesma raça, embrulha tudo. "Ora explique-me lá isso bem explicado! Não minta ..." A gente, quando se senta naquelas cadeiras, fica logo como há-de ir. Fazem-nos falar, apertam, apertam, e quem é que não cai? Tiram de nós o que eles querem. "Diga. Diga! Ora assim, sim! Vê como é tudo ao contrário do que pensava?!" Só visto! Ao fim, sai uma sentença que não é carne nem é peixe, uma pessoa fica borrada, empenhada até às orelhas, e a dever favores até às pedras da rua.
...

... com as devidas adaptações à actualidade, ... a coisa mantém-se!

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