segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 38

 


O sol batia forte no átrio do recinto. Hipólito correu para a entrada à procura do fresco da sala, onde ainda se não iniciara sessão da tarde. No meio do palco, virado para o ecrã, que se estendia até ao topo do edifício, Júpiter de consola na mão, jogava um videojogo. Ao seu lado, Alexey Pajitnov, dava-lhe dicas para o ajudar a organizar as peças que caiam e se encaixavam junto à base. Ao ver Hipólito aproximar-se, justificou-se:
- Estamos aqui a aproveitar o intervalo para testar o meu novo jogo! É como o Tetris, mas agora tridimensional e virado para a economia! As peças representam as “commodities”, isto é, as mercadorias, e o jogador tem de as encaixar nos países que as importam, tendo em consideração as “tarifas” a que estão sujeitas. Júpiter já acertou com algumas, mas como tudo está tremendamente dinâmico, nem ele, que é um deus, consegue ser suficientemente rápido!

Júpiter cutucou-o, como a pedir nova ajuda e ele respondeu prontamente: 
- Cuidado com o Café da Colômbia que vai para os USA. Tem de rodar o mundo, depressa, porque as tarifas aí subiram 25%. É melhor mandá-lo em direcção à Europa. Falhou!, riu-se condescendente com Júpiter que suava ao ver descer o Ferro do Brasil também em direcção aos USA.
- Rode o mundo outra vez!, gesticulou Pajitnov. – Mande-o para a China! Isso! Isso! Boa!
Agora era o vinho Bordeaux que descia, seguido do Cobre do Chile. Júpiter fez tudo para os encaixar na China, mas não foi a tempo e um grande “Game Over!” surgiu no écran.

Júpiter recostou-se, rindo. - Este jogo é levado dos demónios! No princípio foi fácil, quando desceram as terras raras. Há poucos a usá-las. Mas quando foi preciso colocar o Ferro da Índia, do Brasil e da Rússia, começaram as complicações. Oh Pajitnov, este jogo é impossível enquanto as taxas que todos querem pôr sobre as mercadorias dos outros não estabilizarem. É que não dá tempo para nos organizarmos!

Entretanto chegara gente e a sala compusera-se. Júpiter evaporou-se e, na mesa surgiram o Papa Francisco, o Dalai Lama e o Aiatola Ali Khamenei. O tema da sessão era “Como influenciar multidões com frases simples”. O Dalai Lama invocou os 89 anos e a viagem para se limitar a repetir a dúzia de frases “espirituais” já conhecidas, o Aiatola Ali Khamenei, mal se sentou, adormeceu e o Papa Francisco, às primeiras palavras, ficou com falta de ar e a sessão teve de ser interrompida para o levar para o hospital. O Dalai Lama fez questão em o acompanhar, e o Aiatola, que estava espapaçado na cadeira, foi levado ao colo, por um segurança vestido com uma burka, para um cadeirão ao fundo da sala.
O médico disse para consigo, enquanto folheava o programa: - É gente demasiado velha para estas andanças, ainda por cima com sequelas graves de atentados. Devem ter sido convocados só pelo prestígio! Até aos 80 anos, muitos ainda se aguentam, mas depois é difícil encontrar quem ainda mantenha a energia necessária para lutar por soluções adequadas aos novos tempos. Os que se mantêm, arrastam-se no meio de sequazes temerosos que uma nova liderança os retire do poder.

A sessão seguinte era sobre o “Secularismo” e Hipólito não a queria perder. Enquanto aguardava, fechou o programa e os olhos para acabar a sesta que tinha interrompido.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Para sempre

 

… Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a frase, e foram felizes para sempre, isto depois do Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas e a vida continua, e os dois são infelizes até se separarem. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância, lá na Gabela, durante as férias grandes, enquanto tentava construir uma cabana nos troncos de uma acácia. Fui feliz para sempre nas margens de um riacho, uma corrente de água tão humilde que dispensava o luxo de um nome, embora orgulhoso o suficiente para que o achássemos mais do que simples riacho - era o Rio. Corria entre lavras de milho e mandioca, e íamos para lá caçar girinos, passear improvisados barcos a vapor, e também, à tardinha, espreitar as lavadeiras a tomar banho. Fui feliz com o meu cão, o Cabiri, fomos os dois felizes para sempre perseguindo rolas e coelhos através das tardes longas, jogando às escondidas no meio do capim.

in "O vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 37

 

“Não é o homem que escolhe o seu destino. É o Destino que escolhe o homem. A tragédia, por mais paradoxal que pareça, provém, não dos pontos fracos do protagonista, mas dos seus méritos. As pessoas são empurradas para a tragédia, não pelos seus defeitos, mas pelas suas virtudes. É uma suprema ironia que o descalabro tenha origem, não na preguiça ou na estupidez, mas na coragem e honestidade”. Hopolito tinha sublinhado este pequeno texto, num dos livros de Haruki Murakami.

Putin vinha de uma série de vitórias no campo político, económico e até social e recusava qualquer compromisso que pusesse sombra na sua aura. Hipólito estivera atento às leis rígidas adotadas pelas autoridades russas em 2003, que fizeram cair de forma significativa o número de mortes relacionadas com o álcool em todo o país. Durante as décadas de 1990 e 2000, o país viveu uma "crise de mortalidade". Nessa época, metade dos homens em idade produtiva morria prematuramente por causa do álcool. Entre 2003 e 2016, segundo a OMS, o consumo por pessoa caiu 43%, e, como médico, considerava tal facto um feito histórico, mesmo sabendo que os números por si só não especificam nada e que tudo depende do que fazemos com eles.

Hipólito tentava ver para além da encenação de cada actor. Considerava-se um homem de ciência com obrigação de sondar para lá da interpretação “óbvia” dos fenómenos.

Reviu os dados deste jogo: Os EUA têm uma população de 345,5 milhões, os russos são 143,60 milhões, na União Europeia há 449.2 milhões. A China tem 1.600 milhões.
O PIB dos EUA é 10 vezes o da Rússia e 1,5 vezes o da União Europeia e da China. O PIB per capita, do Estado mais pobre dos EUA é superior ao das cinco principais economias da Europa, com exceção da Alemanha. O PIB per capita da Rússia, pouco maior é que o da Bulgária, um dos países mais pobres da Europa. Os EUA investem 3.4% do PIB em Defesa. A Rússia 5,9%. Os países da União Europeia menos de 2%. A China 1,7%.

Estes eram os números que Trump tinha por maus e que considerava necessário alterar para os USA serem “great again!”, de acordo com o “senso comum” da elite que o rodeava, arriscando atritos com os aliados tradicionais e criando desconfiança, quando ela é a base de qualquer "negócio". 
Não ter em consideração a “marca” “made in USA”, parecia-lhe um enorme erro estratégico. A resposta ao bullying do Alan Musk, era já evidente na Europa, onde a Tesla vendera 50% menos automóveis, em Jan/2025 que em Jan/2014. Se ele tivesse em conta que a publicidade é a parte mais cara de um perfume, talvez não levantasse tanto a voz contra situações que só existem por uma questão de prestígio.

Mas o melhor era não fazer prognósticos neste jogo “muito dividido”, como falam os comentadores de futebol. E foi com estes pensamentos que regressou ao quarto para uma sesta, antes da sessão da tarde.
Cochilava há meia hora quando sentiu um vento azulado passar-lhe pela fronte e topou Zeus a entrar, suavemente, por uma das paredes.- Olá meu amigo!, disse o médico. - Então veio acordar-me, com medo de que eu não comparecesse à sessão da tarde?

- Nada disso!, respondeu Zeus. - Vim para me despedir! Diziam que os meus deuses eram instáveis e imprevisíveis, mas foram eles que deram as bases para a vossa civilização. Agora os dois deuses com maior cota no mercado, ou andam distraídos ou desactualizados. O dinheiro é o novo Deus! Tu já viste o poder que Trump tem nas mãos  para fazer subir ou descer as acções na Bolsa de Valores em qualquer parte do mundo? Se ele te dissesse o que vai dizer à sexta feira, depois da Bolsa fechar em Nova York, tu podias apostar uns 10.000€ no efeito das palavras dele e, dois dias depois, estavas a receber uns 200.000€. Ele a ti não te diz mas, de certeza, que diz a quem lhe está mais próximo. E os investimentos nesse jogo são, por certo, muitíssimo maiores. Não quero estar por perto quando o mundo se revoltar. Se não for um Armageddon, vai ser coisa parecida! É que no “mercado de valores” o medo é contagioso e o ladrar faz mais mossa que a mordida!

Despediram-se com um até um dia, na certeza de um reencontro. Hipólito, arranjou-se. Estava atrasado para a sessão da tarde.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 36



Putin, fora informado tardiamente daquele concílio. Alterara a sua agenda, mas contratempos de última hora tinham-no retido em Moscovo e chegava atrasado. Olhou para as cadeiras mais próximas. Na segunda a contar da coxia reconheceu São Nicolau em vestes episcopais. Putin interpelou-o: - O Trump apareceu aí?. São Nicolau fez um resumo do que se tinha passado e aconselhou-lhe calma, lembrando que comportamento gera comportamento e que o “Soft Power” é uma realidade. Putin olhou para ele de soslaio, e resmungou entre dentes: - Queres lá ver este vendido à Coca-Cola a mandar bocas, armado em Secretário de Estado. Lá por ser Santo Padroeiro da Rússia não está autorizado a “bitaites”!, e desceu lentamente até à primeira fila. Sentou-se, provocador, abriu o casacão e retirou de lá uma AK47 que colocou na cadeira ao lado

Quando o deus Polinésio terminou a comunicação, Guterres fechou a sessão da manhã e a sala esvaziou-se lentamente. Putin manteve-se sentado. Hipólito desceu ao seu encontro, com o bloco de notas, qual repórter da agência internacional e questionou-o: - Sr. Presidente: Será possível uma pequena entrevista? Prometo não o demorar mais de 15 minutos!

Hipólito queria perguntar porque é que Rússia, o país com maior território do mundo, diz que a perda de influência na Ucrânia põe em causa a sua “existência”? Porque é que possuindo enormes reservas de petróleo (é o 6º maior produtor), tem um PIB per capita inferior ao da Bulgária? Porque é que a Rússia investe na Defesa 4,3% do seu PIB? e se pensa ter condições económicas para resolver os problemas que causou com a guerra na Ucrânia?

Putin, assim que o sentiu aproximar, levantou-se de um salto e correu até à porta por onde Trump saíra e encontrou-o a assinar uns livros pretos A4, que entregava, junto com a caneta, a um dos seus secretários. Trump levantou os olhos, sorriu-lhe e levantou-se para o cumprimentar efusivamente. – Ora, ainda bem que veio! Estou aqui a assinar uma papelada, para dar nova ordem ao mundo. Aquilo que se fala muito nos últimos tempos: a Nova Ordem Mundial! Já me dói a mão e ainda tenho aquela resma ali em frente e estas duas caixas de canetas aqui ao lado!

Putin, sorriu condescendente, e, certo de que aquela euforia, mais cedo ou mais tarde, ia dar para o torto, respondeu: - Eu vim cá mais para ouvir, que para falar! Já me contaram a sua intervenção. Concordo plenamente! Isto é para quem tem unhas! Pelo meu lado, desde que assumi o poder que não as corto!, e estendeu as mãos para as mostrar. Eram grossas e afiadas. Trump abriu uma das gavetas, tirou umas luvas com garras, calçou-as, retrucando: - São indestrutíveis! Com elas posso rasgar o canal do Panamá, puxar a Gronelândia e o Canadá para dentro dos EUA, fazer uma Riviera em Gaza e até apontar novos caminhos ao povo chinês!
E no que respeita à Rússia? Perguntou Putin.
- Isso ainda não decidi! Tenho de me informar da importância das "terras raras" da Ucrânia nos negócios! Só depois é que me pronuncio.
- Mas olhe que essa a zona mineira já foi conquistada por nós! Replicou Putin.
- Não se preocupe! Se necessário, nós compramos e vocês vão ter que vender! A bem ou a mal!

Hipólito tinha ouvido que chegasse. Virou costas e pensou: Estamos a um passo de uma tragédia. Poucos sabem afrouxar os seus ímpetos na plenitude das suas vidas! O mais frequente é que a ansia de novos triunfos, os conduza à autodestruição.