terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Com um pé na cova























Naquele dia de Inverno, o anúncio da chegada do Dr. Penacova, aqueceu a casa, e tirou toda a gente do escano, para lhe preparar os aposentos e a sala de jantar.
Ninguém antes falara do homem, porque tudo acontecera nesse dia, numa imperiosidade que a todos surpreendeu.
-Oh! Chico! Eu vou aí jantar e levo companhia. Mas ninguém pode saber! Há inconveniente?, perguntara pelo telefone, à hora do almoço, com voz trémula, e o Sr. Francisco, para quem as visitas a desoras, não eram problema, respondeu pronto:
- Claro! Esta casa sempre esteve aberta para ti e para quem trouxeres!, mas, no temor de qualquer percalço, inquiriu:
-Há novidade!?, para do outro lado ouvir apressado:
-Depois eu conto! Até já!, e, iniciou-se o alvoroço.

O Dr. Penacova era amigo do Sr. Francisco. Aos 17 anos fora para Lisboa para se formar em Direito, mas os trilhos da política mudaram-lhe a vida, e nunca exercera a profissão. Fora da oposição a Salazar e, talvez, do partido Comunista. Vivera a guerra de Espanha, a prisão e muitos anos de clandestinidade, quando fizera toda a sorte de trabalhos braçais, sem nunca abandonar a militância.
Constava que fora traído pela mulher, de quem se divorciara. Voltara com o 25 de Abril, pela mão de um político influente, que lhe conseguira uma “choruda” pensão vitalícia.
Dessa vida trouxe cicatrizes no corpo e na alma, sem deixar de manter activa a amizade pelo Francisco, seu companheiro de escola.

Nessa tarde gelada de Março de 1977, um Mercedes preto estacionou à frente do portão. O motorista saiu e depois de um toque, um sorriso e três palavras para o intercomunicador, dirigiu-se à porta traseira da viatura. Entretanto, da outra porta do Mercedes, saíu uma senhora de meia idade, vestida com um grosso casaco comprido castanho por cima de um pijama de felpo cor de rosa e uma touca de lã branca, de onde saíam as pontas de uns bigudins vermelhos, que o ajudou a desenterrar do automóvel, um velho magro e anquilosado, que transportaram pelas axilas, os vinte metros até à porta, enquanto a anfitriã se desfazia em amabilidades, orientando-lhes o caminho.
-Entrem, entrem! Venham depressa para a lareira, antes que enregelem. Que dia para viajar! E logo uma viajem tão grande, do Porto aqui, por esse Alvão cheio de neve! O Chico, vem já! Telefonei-lhe agora mesmo. Teve de ir ao Escritório, mas vem já!.
E, enquanto o trio entrava pela sala, surgiram os cobertores e as almofadas, que iriam dar o mote aos dez dias seguintes naquela casa, varrida pelo frio cortante do vale de Vila Pouca.
Mais tarde, no aconchego da lareira, vieram as justificações a sós que, lentamente se divulgaram pelos 4 jovens médicos do Serviço Médico à Periferia, que familiarmente se hospedavam naquela casa.

O Dr. Penacova aparentava 80 anos. Estava emagrecido e a incapacidade em rodar a cabeça, dava-lhe um ar de tábua andante. Na voz sumida e nas poucas palavras, pressentia-se ainda o medo de uma denúncia.
O seu regresso fora saudado por uma irmã que, se disponibilizara para o ajudar e, simultaneamente, restabelecer a sua antiga família, direccionando-lhe o património para o que considerava “a estabilidade do clã”.
E é, quando a trama desta insinuação se lhe torna evidente, no trajecto de uma ida ao Banco, que a decisão surge inapelável. Deixa-a sair do carro e, logo que lhe sai do campo de visão, ordena ao motorista uma visita surpresa à casa da sua companheira dos últimos anos de clandestinidade para, sem delongas, resgatá-la, dizendo-lhe: “Desce como estiveres, que vamos para Vila Pouca, para casar!”.
A pobre mulher, nem tempo teve para pensar no seu pequeno emprego, nem na roupa que tinha vestida. Fechou o gás e a porta e desceu a correr, habituada como estava a cumprir, sem questionar, as ordens que ele lhe dava.

Fizeram-se as diligências com o notário, que assegurou residência habitual naquele concelho, e afixou o Edital. Depois, foi esperar os oito dias, sem visibilidade ou notícia, para que se pudesse processar o enlace.

Via-o, de vez em quando, ao jantar, porque o cansaço o retinha no quarto, mas a noiva animada por toda aquela história, procurava-nos para contar a felicidade e, sem pudor, descrever a carne do amor e a angústia de não saber se o enchia de felicidade ou se o matava.
Não o matou. Casaram no dia aprazado e foram de núpcias para Espanha com o motorista.
Morreu sete meses depois.
Paz á sua alma.

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