segunda-feira, 27 de abril de 2009

Emparedadas e Alienados


Além de grande número de pobres, doentes, velhos incapazes de trabalhar, viúvas e órfãos, inválidos de guerras, leprosos e outros, que constituíam a maioria da legião de necessitados de toda a forma de assistência, as emparedadas (porque em geral eram mulheres) e os alienados merecem, sem dúvida, uma referência especial. Realmente, entre as grandes desventuradas que a caridade benfeitora socorria, encontravam-se as enceladas, inclusas ou emparedadas, barbaríssima penitência mal conhecida e impressionante da Idade Média.
Nas primeiras épocas da vida monástica, houve religiosas ou beatas que se condenavam a uma vida de rigores, enclausurando-se ad perpetuam em celas muradas e fechadas, donde nunca mais saíam, senão para a sepultura.
A cela da emparedada, era um verdadeiro túmulo: um estreito cubículo de sete ou oito palmos de comprido, por quatro ou cinco de largo, fechado a pedra e cal por toda a parte, e apenas numa das paredes, uma estreita fenda em cruz, que servia para a confissão e comunhão e para passar o alimento indispensável que, em geral, se reduzia a pão e água.
Estas beatas eram sustentadas pela caridade de pessoas benfazejas que lhes levavam alimentos. Mais tarde, estas religiosas, conservando o nome de enceladas, agruparam-se em comunidades, aceitando uma regra e vivendo mais ou menos nas condições das demais religiosas. Em 1210, reuniram-se no Convento de Celas, perto de Coimbra, fundado por D. Sancha, irmã de Santa Mafalda (filhas de D. Sancho I), umas trinta beatas, que até então tinham vivido como emparedadas em Alenquer. Também nessa mesma época, viviam no Convento de Sant’Ana, em Coimbra, umas religiosas em hábitos de grande penitência e pobreza, sustentando-se de esmolas e conhecidas pelo nome de enceladas.
Era porém mais comum e antigo o uso do verdadeiro emparedamento, isto é, homens ou mulheres que desvairados por desgostos, demência ou fanatismo, se encerravam em cubículos estreitos (e por vezes quase insuficientes para neles se deitarem) também fechados a pedra e cal e apenas com um postigo ou fresta, por onde recebiam a esmola ou um escasso alimento – pão e água – com que entretinham a vida.
Desde o século XII até ao século XV, quando os bispos conseguiram reunir estes religiosos, e lhes impuseram regras e vida monástica, abundaram os emparedados por todo o país, principalmente nas grandes cidades. Alguns testamentos da época contemplam estes emparedados, além de outras obras de assistência.
Aliás esta prática de fanatismo era frequente em toda a Europa. Nas cidades da Idade Média encontrava-se muitas vezes nas ruas mais frequentadas e no mercado mais animado e ruidoso, um subterrâneo, um poço, um cubículo murado e gradeado no fundo do qual orava, dia e noite, um ente humano, voluntariamente votado à lamentação eterna ou a grande expiação.
A piedade pouco racional desse tempo, honrava, venerava e santificava se necessário, o sacrifício, mas não lhe analisava os sofrimentos, e deles se apiedava mediocremente. Trazia de tempos a tempos algum comer ao penitente, observava pelo buraco se ele ainda vivia, não lhe sabia o nome, mas apenas há quantos anos ele ali se encontrava. Havia em Paris um bom número dessas celas de orar a Deus e de fazer penitência, que estavam quase sempre ocupadas.
Outro grupo numeroso de infelizes e desgraçados – cuja sorte foi, em tempos não muito longínquos, bastante pior que a dos presos e condenados – chamou a atenção das almas caridosas. Referimo-nos aos alienados em todas as suas variadíssimas modalidades: idiotas, cretinos e loucos propriamente ditos.
Nos tempos antigos, estes infelizes, tidos como possessos e endemoinhados, eram alvo do escárnio e das perseguições do rapazio e da populaça, que os acolhia com vaias e apupos e os apedrejava e repelia sem dó nem piedade.

In “A Assistência em Portugal na Idade Média” de Nuno Moniz Pereira, Edição do Clube do Colecionador dos Correios - CTT Correios de Portugal

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