Estes textos foram-me enviados por Dr. R.A. que os traduziu. São exemplares.
Um Pai Doente, uma Decisão de Vida ou Morte
Por ALICIA von STAMWITZ (editora e escritora em St. Louis), Publicado em 25 de Janeiro de 2010, no The New York Times
Estou absolutamente esgotada desde que o meu pai foi levado ao Serviço de Urgência, pouco depois da 1 hora naquela noite fria de Janeiro. Vivemos esta cena tantas vezes que, quando me telefonaram do lar a dizer que a ambulância o tinha levado, nem me preocupei em ligar aos meus irmãos que vivem noutros Estados. Deixei um recado no balcão da cozinha para os meus filhos adolescentes, apanhei a maleta que já está pronta para estas ocasiões e voei para o hospital atravessando a calma das ruas.
No SU saúdo o meu pai com um beijo. Está sentado numa maca, batalhando para respirar. Os seus olhos estão fechados e não reage à minha voz nem à minha presença, mas agarra a minha mão na sua quando me coloco do outro lado da equipa médica. Respondo ao que me perguntam no estilo telegráfico de que tanto gosto, evitando os pronomes e adjectivos.
“Sessenta e nove anos de idade.”
“Alcoólico bipolar.”
“Sim, duas operações de coração aberto.”
“Não, não consegue falar desde a última trombose, mas está mentalmente bem.”
O médico não me interrompeu, por isso acrescento: “O seu fígado também está afectado, mas não é só por causa da bebida. É porque ele realmente tentou vencer a sua doença bipolar e tomou lítio (*) convictamente. O médico disse o que eu já sabia: o coração do meu pai está fraco, os seus rins estão a falhar e os seus pulmões estão encharcados. Pela segunda vez em seis meses, precisa de meter um tubo na traqueia.
Concordo com um aceno, esperando que continue a lista de procedimentos e exames. Em vez disso, afasta-se um pouco da maca e pergunta: “O seu pai fez alguma declaração antecipada de vontades?”
Fico parada. Nunca um médico da Urgência me perguntou isto antes. Respondo, sem hesitar, sim. “Tem uma procuração válida?” Sim.
Visivelmente aliviado, olha-me nos olhos e, delicada mas explicitamente, pergunta: “O seu pai quer que usemos medidas extremas” — faz uma pequena pausa para acentuar o que está a dizer — “sabendo que provavelmente não vai melhorar?”
As duas enfermeiras a seu lado olham para mim amigavelmente. Disfarço o pânico que sinto a crescer. Procuro estar calma. Preciso de pensar. O médico deu-nos uma saída, uma oportunidade para pensar nas nossas opções.
Sei o que quero: quero acabar com este ciclo louco de hospitalizações e tratamentos heróicos para evitar a morte. Isto não está a ajudar o meu pai. Cada vez está mais doente. Está a morrer. E eu estou mais cansada do que se pode imaginar. Não tenho forças para a família e amigos e o meu emprego ressente-se. Preciso de voltar à minha vida.
Estou tentada a responder: “Claro que não – o meu pai não quereria medidas heróicas.” Mas hesito porque sei que posso não estar certa. Esta noite é diferente, mas não sei se a sua resposta seria diferente.
Olho para ele. É difícil saber se está consciente. Ninguém olha para o meu pai. Todos me fitam com atenção. Finalmente, digo em voz alta a única coisa que sei ser verdadeira. “No passado, o meu pai pediu que fizéssemos tudo o que fosse possível.”
Então, inclino-me sobre ele e pergunto-lhe com voz forte e clara: “Papá, quer ser entubado outra vez? Aperte a minha mão se quer ser entubado.” Espero mas ele não aperta. Em vez disso, surpreende-nos a todos com um mexer da cabeça afirmativo. Está fraco mas o movimento é inquestionável.
Uma enfermeira resmunga e revira os olhos dramaticamente. A outra murmura: “Oh, pá! Lá vamos nós outra vez” e traz um tabuleiro de instrumentos metálicos para mais perto da maca. O médico, mais profissional, mantém-se impávido enquanto sugere que eu saia da sala. “É uma manobra difícil de ver. Muitos doentes lutam e debatem-se, podemos precisar de o amarrar.”
Sim, eu sei. Beijo o meu pai na cara, digo-lhe que volto já e vou para a sala de espera.
O que o médico e as enfermeiras não sabem, e eu própria hesito em admitir, é que eu quase dei a resposta que eles queriam: a única razoável. Mas seria terrivelmente errada.
O meu pai nunca mais recuperou. Nunca mais respirou sem ajuda do ventilador mecânico, não saiu mais do hospital, foi colocado em diálise e com alimentação por sonda. Seis meses mais tarde morreu de insuficiência cardíaca.
Creio que a sua decisão foi um erro. Mas foi um erro dele, não meu. O meu papel era apoiá-lo, não interessa em quê, e falar verdade por mais difícil que fosse.
(*) Correcção: afirma-se um efeito secundário do lítio, um medicamento usado na doença bipolar, que é errado.
Um Homem a Morrer e as Escolhas de Sofia
John Carney, 2 de Fevereiro de 2010, na revista Practical Bioethics
Quero expressar os meus sentimentos a Alicia pela morte do seu pai. Gostaria também de lhe apresentar desculpas a ela e, postumamente, a ele – por terem sido responsabilizados por decisões que nunca lhes deviam ter sido assacadas.
Morrer é já duro que chegue para os doentes e suas famílias, não havendo razões que justifiquem que o façamos mais difícil, colocando obstáculos mecânicos ao seu caminho. Essa não é a arte da medicina, é o desertar tecnológico. Ele morreu ligado a máquinas por que assim escolheu, pensa ela.
É isto realmente verdade? Nós, nos cuidados de saúde, contribuímos para que a sua morte fosse algo de inimaginável há algumas décadas. Não se trata de um “erro” apenas, como ela sugere, mas de um erro evitável pois um homem que está a morrer não tem de fazer as “escolhas de Sofia”.
Não podemos deixar que torturem uma pessoa vulnerável com base numa falsa noção de autodeterminação. Quando uma intervenção médica não pode servir o objectivo para que foi pensada, não pode aproximar-se de um padrão aceitável ou atingir uma certa meta assistencial, não deveríamos forçar a sua aplicação.
Não temos qualquer obrigação de oferecer, recomendar ou mesmo sugerir uma intervenção de que os doentes não possam beneficiar e deveríamos evitar pôr os doentes na “via mecânica para a morte”.
De certo modo, apoiar esta filha e o seu pai exige que confrontemos a inevitabilidade da sua morte com eles, de modo piedoso, honesto e ético. Sim, teria sido errado ela dizer-nos que o pai não queria ser entubado se ele o queria, mas aquela decisão não deveria condicionar todas as outras.
Cabia-lhe dizer a verdade quando perguntada acerca dos tratamentos preferidos por seu pai – especialmente atendendo aos êxitos das intervenções prévias. A nós cabe-nos assegurar que respeitamos as preferências de modo pensado e razoável.
Estamos obrigados a oferecer "cuidados centrados nos doentes" e não "cuidados dirigidos pelo doente". A quem serviu prolongar estes seis meses de agonia? Autonomia sem tino é tão desrespeitosa do doente como o paternalismo.
Sim, Alicia, o seu papel era apoiar o seu pai e o nosso era apoiá-la a si. Você pode ter desempenhado a sua parte, mas infelizmente nós abandonámos ambos, permitindo que o nosso “apoio” produzisse incómodos impensáveis ao mesmo tempo que usávamos erradamente recursos valiosos como se tal fosse aceitável.
(**) A escolha de Sofia (Sophie's Choice) é um romance de William Styron publicado em 1979. Trata do dilema de "Sofia", uma mãe polaca, filha de pai anti-semita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazi a escolher um de seus filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, todos os filhos seriam mortos.
Por ALICIA von STAMWITZ (editora e escritora em St. Louis), Publicado em 25 de Janeiro de 2010, no The New York Times
Estou absolutamente esgotada desde que o meu pai foi levado ao Serviço de Urgência, pouco depois da 1 hora naquela noite fria de Janeiro. Vivemos esta cena tantas vezes que, quando me telefonaram do lar a dizer que a ambulância o tinha levado, nem me preocupei em ligar aos meus irmãos que vivem noutros Estados. Deixei um recado no balcão da cozinha para os meus filhos adolescentes, apanhei a maleta que já está pronta para estas ocasiões e voei para o hospital atravessando a calma das ruas.
No SU saúdo o meu pai com um beijo. Está sentado numa maca, batalhando para respirar. Os seus olhos estão fechados e não reage à minha voz nem à minha presença, mas agarra a minha mão na sua quando me coloco do outro lado da equipa médica. Respondo ao que me perguntam no estilo telegráfico de que tanto gosto, evitando os pronomes e adjectivos.
“Sessenta e nove anos de idade.”
“Alcoólico bipolar.”
“Sim, duas operações de coração aberto.”
“Não, não consegue falar desde a última trombose, mas está mentalmente bem.”
O médico não me interrompeu, por isso acrescento: “O seu fígado também está afectado, mas não é só por causa da bebida. É porque ele realmente tentou vencer a sua doença bipolar e tomou lítio (*) convictamente. O médico disse o que eu já sabia: o coração do meu pai está fraco, os seus rins estão a falhar e os seus pulmões estão encharcados. Pela segunda vez em seis meses, precisa de meter um tubo na traqueia.
Concordo com um aceno, esperando que continue a lista de procedimentos e exames. Em vez disso, afasta-se um pouco da maca e pergunta: “O seu pai fez alguma declaração antecipada de vontades?”
Fico parada. Nunca um médico da Urgência me perguntou isto antes. Respondo, sem hesitar, sim. “Tem uma procuração válida?” Sim.
Visivelmente aliviado, olha-me nos olhos e, delicada mas explicitamente, pergunta: “O seu pai quer que usemos medidas extremas” — faz uma pequena pausa para acentuar o que está a dizer — “sabendo que provavelmente não vai melhorar?”
As duas enfermeiras a seu lado olham para mim amigavelmente. Disfarço o pânico que sinto a crescer. Procuro estar calma. Preciso de pensar. O médico deu-nos uma saída, uma oportunidade para pensar nas nossas opções.
Sei o que quero: quero acabar com este ciclo louco de hospitalizações e tratamentos heróicos para evitar a morte. Isto não está a ajudar o meu pai. Cada vez está mais doente. Está a morrer. E eu estou mais cansada do que se pode imaginar. Não tenho forças para a família e amigos e o meu emprego ressente-se. Preciso de voltar à minha vida.
Estou tentada a responder: “Claro que não – o meu pai não quereria medidas heróicas.” Mas hesito porque sei que posso não estar certa. Esta noite é diferente, mas não sei se a sua resposta seria diferente.
Olho para ele. É difícil saber se está consciente. Ninguém olha para o meu pai. Todos me fitam com atenção. Finalmente, digo em voz alta a única coisa que sei ser verdadeira. “No passado, o meu pai pediu que fizéssemos tudo o que fosse possível.”
Então, inclino-me sobre ele e pergunto-lhe com voz forte e clara: “Papá, quer ser entubado outra vez? Aperte a minha mão se quer ser entubado.” Espero mas ele não aperta. Em vez disso, surpreende-nos a todos com um mexer da cabeça afirmativo. Está fraco mas o movimento é inquestionável.
Uma enfermeira resmunga e revira os olhos dramaticamente. A outra murmura: “Oh, pá! Lá vamos nós outra vez” e traz um tabuleiro de instrumentos metálicos para mais perto da maca. O médico, mais profissional, mantém-se impávido enquanto sugere que eu saia da sala. “É uma manobra difícil de ver. Muitos doentes lutam e debatem-se, podemos precisar de o amarrar.”
Sim, eu sei. Beijo o meu pai na cara, digo-lhe que volto já e vou para a sala de espera.
O que o médico e as enfermeiras não sabem, e eu própria hesito em admitir, é que eu quase dei a resposta que eles queriam: a única razoável. Mas seria terrivelmente errada.
O meu pai nunca mais recuperou. Nunca mais respirou sem ajuda do ventilador mecânico, não saiu mais do hospital, foi colocado em diálise e com alimentação por sonda. Seis meses mais tarde morreu de insuficiência cardíaca.
Creio que a sua decisão foi um erro. Mas foi um erro dele, não meu. O meu papel era apoiá-lo, não interessa em quê, e falar verdade por mais difícil que fosse.
(*) Correcção: afirma-se um efeito secundário do lítio, um medicamento usado na doença bipolar, que é errado.
Um Homem a Morrer e as Escolhas de Sofia
John Carney, 2 de Fevereiro de 2010, na revista Practical Bioethics
Quero expressar os meus sentimentos a Alicia pela morte do seu pai. Gostaria também de lhe apresentar desculpas a ela e, postumamente, a ele – por terem sido responsabilizados por decisões que nunca lhes deviam ter sido assacadas.
Morrer é já duro que chegue para os doentes e suas famílias, não havendo razões que justifiquem que o façamos mais difícil, colocando obstáculos mecânicos ao seu caminho. Essa não é a arte da medicina, é o desertar tecnológico. Ele morreu ligado a máquinas por que assim escolheu, pensa ela.
É isto realmente verdade? Nós, nos cuidados de saúde, contribuímos para que a sua morte fosse algo de inimaginável há algumas décadas. Não se trata de um “erro” apenas, como ela sugere, mas de um erro evitável pois um homem que está a morrer não tem de fazer as “escolhas de Sofia”.
Não podemos deixar que torturem uma pessoa vulnerável com base numa falsa noção de autodeterminação. Quando uma intervenção médica não pode servir o objectivo para que foi pensada, não pode aproximar-se de um padrão aceitável ou atingir uma certa meta assistencial, não deveríamos forçar a sua aplicação.
Não temos qualquer obrigação de oferecer, recomendar ou mesmo sugerir uma intervenção de que os doentes não possam beneficiar e deveríamos evitar pôr os doentes na “via mecânica para a morte”.
De certo modo, apoiar esta filha e o seu pai exige que confrontemos a inevitabilidade da sua morte com eles, de modo piedoso, honesto e ético. Sim, teria sido errado ela dizer-nos que o pai não queria ser entubado se ele o queria, mas aquela decisão não deveria condicionar todas as outras.
Cabia-lhe dizer a verdade quando perguntada acerca dos tratamentos preferidos por seu pai – especialmente atendendo aos êxitos das intervenções prévias. A nós cabe-nos assegurar que respeitamos as preferências de modo pensado e razoável.
Estamos obrigados a oferecer "cuidados centrados nos doentes" e não "cuidados dirigidos pelo doente". A quem serviu prolongar estes seis meses de agonia? Autonomia sem tino é tão desrespeitosa do doente como o paternalismo.
Sim, Alicia, o seu papel era apoiar o seu pai e o nosso era apoiá-la a si. Você pode ter desempenhado a sua parte, mas infelizmente nós abandonámos ambos, permitindo que o nosso “apoio” produzisse incómodos impensáveis ao mesmo tempo que usávamos erradamente recursos valiosos como se tal fosse aceitável.
(**) A escolha de Sofia (Sophie's Choice) é um romance de William Styron publicado em 1979. Trata do dilema de "Sofia", uma mãe polaca, filha de pai anti-semita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazi a escolher um de seus filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, todos os filhos seriam mortos.
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