sexta-feira, 20 de abril de 2012

Agonias



Em casa dos meus sogros havia sempre um cão, para dar sinal, pois a ocasião faz o ladrão e nem sempre se fecham as portas quando se vai à horta.
Conheci três. Todos pequenos, diferentes, sem raça e de voz bem afinada. Um desapareceu num calor de sangue atrás de um cio, outro esganou-se num arame, e o último, que era arraçado de Pinscher e se dava pelo nome de “Poli”, morreu de “doença prolongada”.
Era um cão feliz, que me mimosiava com semi-mortais encarpados, de autodidacta, só porque lhe dei colo quando cachorro desamparado. Depois sossegava e mantinha-se atento para qualquer saída, já que em casa, nunca entrava, por não ter sapatos para descalçar.
O “Poli” viveu uma normal vida de cão. Comida a horas, uma festa na cabeça à chegada e à saída, uma coleira presa à casota quando os donos se ausentavam.

Um dia, numa das visitas de fim-de-semana, não apareceu. Um tumor tirara-lhe a alegria. No dia anterior ainda o viram, arredio, mas há semanas que não tocava na comida.
Chamei-o, enquanto dava uma volta pelo terreno. Não respondeu. Encontrei-o, por fim, bem longe, no fundo do quintal, enfiado por baixo de uma sebe.

Ajoelhei-me junto a ele. Virou a cabeça, movimentou ligeiramente a cauda, e voltou à posição inicial, como a dizer: “Obrigado pela visita! Agora deixa-me em paz!” E foi o que fiz, depois de lhe passar desajeitadamente a mão pelo lombo pouco acessível.
Morreu no dia seguinte.

Hoje voltou-me à memória, ao ver, no Serviço de Urgência, o Sr. Lima, também ele "vítima de doença prolongada", e que a esposa trouxe, contra sua vontade, por ter a fralda seca "há mais de doze horas", depois de múltiplas espiadelas.

O Poli teve mais sorte. Morreu de acordo com a sua opção. Sem soros, sondas, análises, posicionamentos, ruídos estranhos e vigilâncias, para que tudo ficasse registado e por mais umas horas de agonia.

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