quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Carta fúnebre a um amigo



De vez em quando, a vida traz-nos e leva-nos gente como tu. Alguém que nos acode nas minudências que nos atrapalham o estar. Tu eras desses. De segunda a sábado, arreganhavas num sorriso aquela meia dúzia de dentes, enquanto nos afiavas uma lâmina da motosserra, reparavas uma máquina ou davas o conselho para uma novidade sem aquela ganância de querer vender tudo a qualquer custo.
Tinhas uma postura de amigo com quem se trocavam palavras divertidas, porque sabias estar, mesmo quando a saúde te pregava aquelas matreirices da idade.
Confesso que não esperava que te fosses assim de um dia para o outro. Estar a carregar material na terça-feira e morrer de uma pneumonia às primeiras horas de quinta, mesmo sendo diabético, é coisa de cismar. Devias ter morrido de outro modo. Esta rapidez que te protegeu às agruras da decadência, deixou a quem te conhecia, uma sensação de abandono. Aos sessenta e seis anos não se é um velho. Esperava de ti uma outra energia, e não essa catadupa de disfunções com que entraste pelo hospital adentro. Ainda há cinco anos me gritavas do outro lado da rua “Dr.! É Cialis! Não é Viagra! … É Cialis!”, e num instante foram-se-te os pulmões, os rins e o coração, uns atrás dos outros numa falência multiorgânica impossível de suster.
Olha! Passei pela loja para saber da tua mulher, que, por certo, se debate com a volatilidade daquilo que julgamos certo, sem conseguir ver saída para a oficina e para o prato do lado de lá da mesa. Gostava de lhe dizer que ninguém tem culpa, que talvez se pudesse fazer mais, mas que o resultado seria o mesmo, que estas coisas … acontecem, mas acima de tudo dizer-lhe, que nos deixaste uma boa memória e que esse valor se prolonga para além dos dias que tiveste.
Fica bem, um abraço!

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