sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Más vidas


-“Mas que tenho eu a ver com essa doente?", pergunto à enfermeira que me põe aquele processo debaixo do nariz.
-“A esta hora já não há Neurologia, e a doente está sem médico e sem folha de terapêutica!”, responde-me, enquanto parte para outra solicitação no meio daquele corredor atafulhado de doentes e familiares.
Abro o processo para ler a informação disponível. Trazida pelo INEM em coma. Encontrada caída no domicílio. Sinais vitais bem. Mais à frente, ... más condições de higiene, ... alcoolismo, e nas análises - Alcoolemia 5.0 g/l (dez vezes superior ao máximo legal para conduzir, ... mas ela não deve andar pelo asfalto). Está cá desde a manhã, numa maca do corredor, com soro. Já deve ter dormido que chegasse. Vou vê-la.
Ainda dorme. A perna direita assoma-lhe por baixo do lençol, suja e com crostas em vias de cicatrização. Na outra ponta da maca o enovelado dos cabelos tapa-lhe o rosto.
- “Dona Glória!” acordo-a. –“Está bem?”
Roda lentamente a face na minha direcção. Tem quarenta anos, mas aparenta mais. Falta-lhe metade dos dentes da frente. Com os olhos semicerrados questiona-me: -“Que foi?”
- “Não foi nada! É só para saber se está bem!”
-“Estou!” Vira-se, senta-se na maca, esfrega os olhos e olha para um lado e para o outro para se assegurar onde está. Depois fixa o dorso da mão esquerda e estranha a agulha por onde o soro corre. Tenta tirá-lo. Impeço-lho.
- "Dona Glória! A senhora já está melhor? Quer ir para casa dormir o resto da noite? É que vamos precisar dessa maca para outros doentes! Está bem? Como é que a senhora vai para casa?"
Demora um pouco a perceber com quem fala e onde está, volta a olhar em redor, passa a mão livre pelo cabelo, e como que conformada, responde:
-"Vou a pé!. Eu moro perto!", e faz um movimento para descer da maca, sem cuidar de que ela tem rodas. Seguro-a.
-" Tenha calma, que a senhora não pode ir assim! Tem alguém da sua família que a venha buscar? É que o telefone fixo do contacto que temos, não atende!”, pergunto enquanto a contenho. Olha de novo para mim, levanta as sobrancelhas a custo, e soletra o número de um telefone móvel.
–"Deixe-se ficar a dormir mais um bocadinho, que eu vou ver se alguém a vem buscar!"
Deita-se, mas, logo de seguida, levanta-se para dizer: -"Quero ir mijar!"


-"Está aqui o companheiro da sra. Glória. Mando-o entrar?"
É um homem pequeno, magro, sujo e que cheira a álcool repassado. Veste uma jaqueta verde desbotada, e umas calças de bombazina que já foram vermelhas. O último banho deve ter mais de quinze dias. Hesito na sua competência, mas mesmo assim questiono-o:
-"O Sr. sabe porque é que a Sra. Glória foi trazida ao Serviço de Urgência?"
-"Sentiu mal em casa, e ... desmaiou no quarto de banho!"
-"Mas você deve saber que isso foi por causa do vinho!"
Levanta o olhar, como que a estranhar, e com um simulacro de convicção, afirma: -"Não sabia!, Mas é bom ficar a saber, ... para ela não beber mais!". Depois, como que cansado deste esforço, abre as pernas para se equilibrar e dá uma coçadela nas virilhas por dentro dos bolsos.

Meço-o de novo. O bafo não engana. Acompanho-o até à porta, sugiro-lhe que venha no dia seguinte para falar com a assistente social, e pergunto:
-"Vocês vivem de quê?"
...

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