terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O Comendador





















1989 – Não há telemóveis, a Auto-Estrada Porto - Lisboa não está completa e as Estradas Nacionais estão saturadas.
Sou médico (Medicina Interna) num Hospital do Norte de Portugal e, na Urgência, sou abordado por um colega que me pede para assistir um VIP, que acabara de chegar.
Receia ter um enfarte do miocárdio. Avalio, confirmo a suspeita de síndrome coronário agudo e proponho internamento.
Tem 74 anos e é diabético. Tem título de Comendador, vive em Lisboa e é dono de grande fortuna. Veio a um casamento na região a conduzir o seu Mercedes. Era suposto regressar no dia seguinte. Não tem filhos.
Falamos. É uma pessoa simpática, cordial e entende as dificuldades de hotelaria de um hospital público. Faço o melhor que posso e disponibilizo-lhe uma enfermaria onde não se sinta constrangido.
Repouso, dieta líquida, soro, medicação. Amanhã mais exames.
Tento acalmar a ansiedade da mulher – impossível. A senhora é mesmo rica.

Nos dias seguintes o comendador cumpre tudo com um sorriso. A mulher vê disfunção em tudo. A alimentação não está bem, há demoras no atendimento e ruídos que incomodam…
Primeiro, 2º, 3º e 4º dias. Está tudo bem. Não tem sintomas, análises sem alterações e Prova de Esforço máxima normal. Há segurança para Alta a permitir que o doente regresse a casa. São 14:00h de sexta-feira.

- Como? Pergunta a esposa. -Assim de carro para Lisboa? Só eu e ele? E se… e se...???
Tento acalmá-la explicando que se concluiu que a razão do internamento foi uma precaução por uma doença que afinal nunca existiu. Não vale a pena. Está incapaz de ouvir.
Faz vários telefonemas para Lisboa. Um mais prolongado para o motorista. Quer que os venha buscar, apesar da saturação das estradas. Depois reconsidera, por não o querer a fazer a viagem de noite para cá e querer sair de manhã cedo.
São 17h. Amanhã vou de férias para o Algarve. Vamos 5 num carro sem ar condicionado. Três são crianças. É Agosto e está calor. Peso isto tudo e, para pôr fim à indecisão, voluntario-me: - Se quiserem, vou com vocês até Lisboa!

Falam. Volta a telefonar e, por fim, acordamos em sair às 08:00h. Combinaram um encontro, sábado, com o seu médico assistente, que estará à espera deles.

Em casa, acerto com a família. A minha mulher leva o carro e eu, vou no Mercedes com o comendador e a mulher.

Sábado - 07:30h. Arrumo as malas e a família e vamos ao Hospital.
Encontro a mulher do comendador que me diz que não demora e que, o final da viagem é no Hospital S. Francisco Xavier. É lá que o médico assistente está. Somo mentalmente as horas da viagem e do almoço, e combino com a família: - “Às 16:00h, na porta daquele Hospital. Vão andando, que eu já vos apanho!"

07:45h. Subimos à enfermaria. O comendador ainda está no quarto, mas também lá estão dois socorristas.
-"Então??"
-"Achei melhor ele ir deitado!"
Ela quer que ele vá de ambulância e que nós o sigamos no Mercedes.
Acho um abuso esta mudança, mas já não posso voltar atrás. A família já vai longe e não me posso atrasar. Tenho que aceitar, sem grandes discussões.
Descemos. O homem está pouco conformado. É um bom conversador e vê-se de barriga para o ar nas traseiras de uma ambulância, com mais de 7 horas de viagem pela frente. Ainda faz uma última tentativa, mas ela é peremptória.
–“Vais na ambulância!.”

Sugiro que seja eu a conduzir e ela acede.
Aí estou eu já na EN nº13, de chofer, com uma “comendadora” de 70 anos ao lado, e uma ambulância, a passo, à frente, porque o caminho é mau e há muito transito.
Faço conversa: -"Então as férias??" E ouço os incómodos do ter muito dinheiro. A canseira de ter de mudar frequentes vezes de roupa nos cruzeiros à volta ao mundo, onde parecia mal usar a mesma indumentária para o jantar, almoço, para o Deck ou para a piscina, e outras, mais as tristezas de ver um ou dois caixões a sair do barco de quem foi surpreendido pela morte ou pela doença, durante as longas viagens da 1ª metade do século XX, mais as benfeitorias às crianças e aos Hospitais do Estado, e o ter de pagar IVA sobre o material sofisticado que oferecia, e os cãezinhos: "quer ver?!", e … -"será que ele vai bem?"

Entre conversa e silêncios são 12:30h. Estamos na Batalha e não se comeu nada desde que saímos. Ah! O comendador é diabético!.
Acelero, ultrapasso e faço sinal que vou parar num restaurante, logo acima, que me lembro de viagens antigas. Ponho pisca, certifico-me que sou seguido, e meto confiante para o parque de estacionamento.
Saio e não os vejo. Não me seguiram?! Procuro-os. Estacionaram a ambulância com a traseira em cima das escadas de acesso ao restaurante. Só me faltava esta!!!! Apresso-me para dar um aspecto diferente à situação. Impossível! As portas da traseira da ambulância estão abertas e tocam as portas do restaurante. Os comensais, lá dentro, olham incrédulos. Com a naturalidade possível, ajudo-o a levantar-se da maca onde esteve amarrado, e dirigimo-nos em grupo para uma das mesas.
O comendador está na maior. -"Tudo bem!" Nada incomodado com a viagem, mas com fome. Esteve com dieta líquida 4 dias e, ontem, naquela confusão, depois de se ter decidido da alta, esqueci de a mudar.

Sentamo-nos os cinco. O comendador, a mulher, os dois socorristas e eu. Tudo cheio de fome!
Vem a lista. Falo de peixe, a dar exemplo, acertando-me com a diabetes do homem.
O comendador nem ouve:
-"Quero dobrada!"
-"DOBRADA???",
-"Sim dobrada! Estive 4 dias com dieta líquida!". Relembrou.
Falamos, bebemos e vimos o conteúdo das travessas a desaparecer.
14:00 h. Acabou a sobremesa. Café e vamos que se faz tarde.

Saem os socorristas mais apressados, vão buscar a ambulância e colocam-na na mesma posição – porta da ambulância com porta do restaurante. O comendador entra, amarram-no à maca e partimos de novo em direcção a Lisboa pela EN nº1.
Mais conversa e silêncios com a senhora e depois Auto-Estrada.

Chegamos a Lisboa e vamos para Almirante Reis. É lá que está a casa e o chofer que espera. Passo para o banco de trás e vamos rápidos para S. Francisco Xavier.
Chegamos. Muita gente e muitos carros. É difícil encontrar quem quer que seja, mas sei o nome do médico a quem quero entregar o meu relatório.
Dirijo-me ao Porteiro, identifico-me e pergunto por quem quero.
-“Está na Unidade de Cuidados Intensivos. É por ali!”
Vou lesto, a ver se ainda chego com sol ao Algarve. A minha gente dentro do carro deve estar desesperada.
-"Doutor tal e tal?"
-"Sim!"
-"Passou-se isto, aquilo e aqueloutro, mas no fim concluí não haver problema de maior!. Não sei onde está o comendador, mas ele está bem e acabou de comer uma feijoada à minha revelia!!"
-“Ele está ali em frente!”
-"O quê????"
Olho para a enfermaria e vejo um sorriso e uma mão levantada a cumprimentar-me de uma das camas. Monitores a funcionar, soros a correr.
Incrédulo fui ter com ele.

Nada de novo. Tudo bem. Despedi-me e desejei-lhe boa sorte, mas que por nada se deixasse operar nos próximos dias.
Saí a correr. Dei com o carro da minha família e acelerei para a praia com a sensação de ter sido personagem de um filme absurdo, que felizmente acabou bem.

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