segunda-feira, 5 de abril de 2010

Violência psicológica na Escola























O Rapa-Côdeas tinha mau feitio. Ganhara aquele nome depois de alguém o ter observado a retirar material inerte do nariz, enrolá-o entre o indicador e o polegar, e atirá-lo para o aluno que queria inquirir, enquanto lhe dizia: -“Diz tu!”
Aquele “Diz tu” com que corria as carteiras uma a uma, fazia-nos tremer e temer o “chumbo” no fim do ano. Sim, que o “Rapa” não era para brincadeiras. E que o diga o Valente que era meio gago e que, três antes dele, já tentava pôr a primeira sílaba na garganta, para não perder a oportunidade. Quantas vezes o deixava no Gue… Gue… e passava para o seguinte “Diz tu!”.
Mas há que reconhecer que ele se preocupava e obrigava a pensar nos "que e como" , para que o Português merecesse honras de 5ª língua mais falada do mundo.

Nesse dia era Camões que se lia.
- "Oh Antunes, sobe ao estrado e lê o poema da página 56 da Selecta Literária: Descalça vai para a fonte..."
O Antunes, não era dos mais expeditos, e o ar severo do “Rapa” tolhia-lhe o pensamento. Subiu aquele cadafalso com os olhos baixos e começou a ler monocordicamente, com voz sumida: - "Descalça vai para a fonte Leonor pela verdura; Vai fermosa, e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fina escarlata, Sainho de chamelote; Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura. Vai fermosa e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrançado, Fita de cor de encarnado, Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Vai fermosa e não segura."

O "Rapa" deixou-o terminar, sentindo que ele não tinha entendido o que lêra. Depois, para que organizasse o pensamento, disse-lhe, esforçando-se por manter a calma:
-“Já vimos que sabes ler. Agora vais voltar a lê-lo mais alto, para todos ouvirmos, como se nos estivesses a contar uma história!”
O Antunes, encheu o peito e retomou o poema, declamando mais audível e soletrado:
- “Descalça vai para a fonte, ... Leonor pela verdura ….Vai fermosa, e não segura."
Parou, a ver o efeito, e continuou:- “Leva na cabeça o pote, ... O testo nas mãos de prata…”,
- “Pára!”, interrompeu o "Rapa", quando ele já dava indícios de algum ânimo. - “Diz-me lá o que é um pote?”
Aquela pergunta, numa altura em que ele se concentrava no modo como deveria declamar, gelou-lhe o sangue. Olhou para o professor, depois suplicante para nós, e ao segundo “Então?” do "Rapa", responde:
- “Um pote é ... ... um ... ... penico!”, perpetrando um dos muitos assassínios linguísticos que arrasavam a pouca tolerância do "Rapa", que nunca ousaria pensar que Camões pudesse fazer uma ode a uma linda mulher, na altura em que ela ia à fonte lavar um penico cheio de dejectos.

2 comentários:

Ana disse...

nesta história que eu já ouvi tantas vezes, fico sempre com uma pena do Valente... (?na história original era valente?)

capitão disse...

Sim. Vasco Valente!