sábado, 15 de janeiro de 2011

Uma Cheia no Zêzere




















Este texto é mais um daqueles que o meu
avô escreveu e que eu, com "ousadia de ignorante", me atrevo a uma versão, para lembrar esse tempo em que as calamidades eram diárias.


Quando o Zêzere se enfurecia e saltava as trincheiras do seu estreito leito, era um touro investindo contra a trincheira do Tejo que o oprimia, e as águas de Albarracim quase se suspendiam, represadas num grande lago, que se escoava encostado aos salgueiros, como um burguês a atravessar uma ruela em dia de romaria. Nem Caronte ousaria dobrar aquele cabo das Tormentas que se formava na foz do rio lusitano.
Mal das plantas sem raízes bem seguras. Nateiros ubérrimos apareciam e desapareciam como mágica. Terras produtivas, onde antes se empenachavam milheirais e graciosas tangerineiras a reluzirem entre a folhagem verdoenga, emergiam desventradas, acabadas estas fúrias, só com a ossatura degradada à mostra. Terrenos áridos, onde outrora só medravam nalguma cova, tramagas raquíticas ou reduzidos canteiros de grama, eram recobertos por grossa camada de lodo, que se ajustava ali tão bem, como um casaco nas costas de um janota. E neste rodopiar de rapa, tira, põe e deixa, surgia, às vezes, nestes oásis, uma oliveira, que na primavera seguinte continuava a sua vida esquecida do puxão que o rio lhe dera nas raízes.



O Salvador cruzara os braços sobre a mesa medalhada pelos copos, e com o queixo pousado sobre as mãos, observava a bisca de nove dos camaradas. Ainda a meio da jogatina, já resfolegava num sono tão ruidoso, que o baralho vibrava como um harmónio.
O Calhaz, irritado com aquele bufar e com o olho vivo do Alqueirão a espreitar à sorrelfa a carta que se arqueava, socou a mesa com tais modos, que o Salvador ao acordar bruscamente, desmanchou o baralho com os braços.
-Raios partam o homem, mais as habilidades dele!, resmungou, tentando segurar a mortalha que lhe caía do beiço. -Ganhava dois jogos! Tinha manilha, às e três trunfos!, e levantou-se embezerrando a sua cara de Eduardo VII, enquanto aquele, depois de esfregar os olhos com as costas das mãos e de olhar ao redor da Taberna da Ana Casimira, gaguejou sem saber nem poder explicar-se: -Que raio de sonho! E eu que tenho tanto azar quando sonho assim! Sonhei que o meu pai, que Deus haja!, e levantou o barrete, mostrando as melenas emaranhadas na varanda da testa, - Vinha a boiar rio abaixo, envolto em enguias grossas como punhos, inchadas de tanto mamarem! Uma delas, com uns olhitos vermelhos, muito saídos, preparava-se com o focinho agudo para lhe entrar pela boca aberta, onde só havia um dente de ouro!
-Isso é que era uma festa para as enguias, ó Salvador! Era como se nós matássemos uma cabra e a estivéssemos a comer à vista dos chibatos!, gracejou o Alqueirão enquanto esmigalhava na cova da mão uns restos de charuto. -Reza-lhe por alma, que é o que ele precisa!
-E eu que logo de manhã vi o maldito cabril sobre o telhado a saltitar de telha em telha. E a minha mulher disse-me: Temos morte na vizinhança! Sempre tive agouro com o raio do pássaro!, rematou, ainda envolvido nas superstições.
-Deixem-se de cantigas!, retorquiu, mal humorado, o Calhaz, atando o baraço para segurar as calças. - O cabril é um pássaro como os outros. E quem se fia em sonhos, tem falta de entendimento! Toca mas é a andar! Que hoje temos de levar o milho ao dono!
-O quê? Com um temporal destes?!, protestou o Alqueirão embrulhando-se mais na japona negra que o transformava num esbirro do Santo Ofício.
-Para baixo, todos os santos ajudam!, argumentou, solene, o arrais.



Eia! O que aí vem!, exclamou o Cacilhas para o pai, suspendendo a caminhada. – Voltemos para trás e vamos segurar melhor o abringel, que o rio vem cheio de farroncas!, e dando uma reviravolta ao guarda-chuva de barbas de baleia, que os abrigava, assestou-o como um D. Quixote, contra a chuva que os enroscava.
Ouvira já o sussurrar do Zêzere lá ao longe, na Escorrega, sussurro que se perdera depois nalguma curva, para depois aparecer mais vivo e perto e começar de novo a soar como o chocalhar de muitas matracas.
-Este rio, com uma mijadela de gato, põe-se assim!, disse-lhe, imitando-lhe a corcova, quando um aguaceiro mais violento os impelia contra a parede. Além, cruzaram-se com o Barbisco a oscilar sob o peso de um barril que trazia sobre o ombro, e à porta do Couve-Velha pararam para lhe ouvir os lamentos do prejuízo que o rio tinha causado na madeira levara. Já longe, disse o pai, entre dentes: Tenho pena, mas é dos pobres! A cheia é como o Zé do Telhado, tira aos ricos e dá aos pobres!
Na verdade a cheia era uma cornucópia para esta gente. A madeira e outros despojos que cabriolavam rio abaixo, ficavam à mão de semear entre os arvoredos, como um foro que eles cobravam anualmente ao rio. Não havia cães de guarda, feitores ou donos de quintas, nem tão pouco muros nem portões. Tudo ficava ao Deus-dará.

….

Já não havia mais dilações para os moradores da parte baixa da vila. Na madrugada já as águas fariscavam pelas embocaduras das ruas e becos.
Nas tabernas e armazéns um lufa-lufa de gente esgatafunhava todos os cantos. Despiam-se prateleiras, enchiam-se cabazes e caixotes de garrafas, despejavam-se tonéis para barris e cascos mais pequenos, fazendo–os rolar com rumores de trovoada. Desaparafusavam-se balcões, armários e as portas dos seus gonzos. Homens corcovados transportam sobre o dorso objectos volumosos para a rua de Trás-da-Igreja, para os por a salvo da investida das águas, deixando para trás todos os recantos e esconsos a patentearem a sua velhice e sordidez, num chocante abandono de lojas nuas e portas escancaradas.
O silêncio sombrio do rio ia transformando em casarões decrépitos os prédios setecentistas, com soalhos apodrecidos e janelas sem caixilhos, contaminando de tristeza quem ali passava, sem contudo atormentar a maioria dos moradores, pois das casas habitadas saíam, a tempos, gargalhadas e cantigas.
A Garcelha, com as ninhadas de frangas já a pedirem galo, acabava de deixar o tegúrio entregue às ratazanas e ao enxovalho do rio e partiam com os restos das bugigangas, meneando as ancas e enchendo a rua com cantigas de despedida ao velho prédio, que deixavam de goelas escancaradas e olhos vazados.
Mais adiante a Perdida, a chocar outro parto gemelar, e sempre de galo vadio, rouquejava o seu estribilho predilecto: -Oh! Rapazes, isto é que é gado! Parecia o homem dos sete instrumentos. Sobre a cabeça um grande alguidar vidrado onde espreitavam garrafas e bicos de almotolias, debaixo de um braço um cântaro e às cavalitas o último rebento dos seus loucos amores. Os outros pintainhos, molhados até aos ossos, rodeavam-na carregadinhos conforme as posses como a afirmar o adágio de que o trabalho dos meninos é pouco, mas quem o não aproveita é louco.

...

Os barcos acompanhavam a enchente e abrigavam-se entalados nas ruas cochilando contra o muro dos quintais como uma armada prestes a assaltar a vila.
-Eh Zé, acorda que são horas!, clamou o Alqueirão por debaixo do oleado, gatinhando por cima dos sacos de milho que lhe tinham servido de colchão, em direcção à proa. Espreguiçou-se, pegou na garrafa de aguardente, bocejou, bebeu três goladas, limpou os lábios com as costas da mão, fez um AHH!, e disse:
-Que raio de tempo! Tu ontem sonhaste com o cabril e eu fartei-me de comer uvas brancas esta noite!
-São lágrimas!, respondeu o camarada, novamente crucificado pelas superstições. Arregaçou as calças, saltou para a margem e meteu-se pela água espumosa para desatar a embarcação.
Àquela hora, nas ruas e becos da parte baixa, já inundada, ainda era cedo para as comadres observarem das janelas o vaivém das ressacas. O Excomungado, um pirata do rio, era o primeiro a passar ali com o seu abringel carregado de madeiras, abóboras e tronchudas. E, enquanto remava, dava a novidade: - A canoa do Zé Coimbra escangalhou-se contra os pilares da ponte. Foi uma sorte não levar ninguém!

O rio tinha uma sonoridade mais forte contra os pilares da ponte. Era um sorvedouro abísmico, que fazia tremer o mais ousado só de olhar para aquela torrente entrançada que fugia embaraçando-se nos obstáculos e desfazendo-se em turbilhões de massas pardas como lavas na cratera de um vulcão.
-Isto agora vai num rufo! Daqui a uma hora estamos lá!, afirmou o Calhaz, enquanto fazia fica-pé e empurrava a proa do barco com as costas.
-O raio é o nevoeiro que se está a formar!, emendou o Alqueirão, afugentando o cão que saltava e gania em volta do seu abringel, em ânsias de navegante.
O nevoeiro tombava pesadamente sobre o Tejo, como se um carreamento de mármore lhe tivesse tapado o seu leito, ameaçando soterrar a vila.
-Isto passa! Nós não somos fidalgos! Temos de ganhar o pão com o suor!, disse o arrais, segurando firme o leme do barco que seguia célere a baloiçar sobre a corrente impetuosa do Zêzere, e que ao chofrar-se com as águas do Tejo se empinou como um cavalo assustado, para depois numa reviravolta, apanhar a corrente de feição e furar pela serração compacta, enquanto o cão, na margem, uivava baixinho com intermitências, como um dobre de finados.

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