in "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" de Mia Couto
sexta-feira, 14 de março de 2025
Frase do Dia
domingo, 9 de março de 2025
Lembranças do Olimpo 41
Hipólito chegou a casa já o sol se punha. Zeus, antes de se despedir sugeriu: - Vi que estás muito impressionado com o Donald Trump e, por isso, gostava que esperasses aqui um pouco, que eu vou ao Inferno trazer de lá um arrependido para tu conheceres que é cinco estrelas, e, num ápice, atravessou o chão para mergulhar nas profundezas da terra em direção ao Tártaro. Minutos depois estava de volta trazendo um patrício romano pela mão.
- Oh, meu amigo! Ia trazer-te o Nero, mas achei melhor o Júlio César, pois foi ele que deu cabo da República!, disse, enquanto empurrava ligeiramente o César para a frente. – É que Trump está a tentar imitá-lo como ditador. Mas preferia que o ouvisses!
Júlio César, com as vestes senatoriais ensanguentadas, pediu autorização para se sentar e iniciou a sua narrativa sobre os factos passados, com a humildade de um escravo.
- A República tinha demasiados “Checks and balances”, como agora se diz, que dificultavam a implementação das reformas sociais e políticas que eu preconizava. Foi por isso que impus a Roma a minha vontade. Centralizei o poder e a burocracia, nomeei-me imperador e até aceitei honras divinas. Nos primeiros tempos a coisa até que nem correu mal, mas a oposição política cresceu e, nos Idos de Março de 44 a.C., num dia tido como prazo para quitação de dívidas, um grupo de senadores aristocratas liderados por Marco Júnio Bruto (que até era um dos meus mais protegidos), assassinou-me, precipitando uma nova guerra civil e, como consequência, o governo constitucional republicano nunca mais foi restaurado.
Fui morto aos 56 anos. Tivesse eu sido mais inteligente e não tinha transformado a República num Império. Os benefícios de curto prazo não compensaram o que veio depois. Mais de metade dos Imperadores que me sucederam, morreram como eu, assassinados pelas forças que supostamente lhes eram leais. O poder absoluto não só corrompe como dá um “bode expiatório” fácil de identificar.
Hipólito interrompeu-o. - Não está a sugerir que seja esse o fim mais provável para Donald Trump, pois não?!
- Não deixa de ser uma possibilidade!, respondeu Júlio César. - Foi assim no Império Romano e é-o agora.
Zeus, que até aí se mantivera calado, atalhou: - Nunca faltaram indivíduos cheios de razões, nem razões para o que quer que seja. Trump viu demasiados filmes de Cowboys, onde o herói resolve tudo sozinho e tenta imitar o Lone Ranger acompanhado por um Tonto que, no caso, é o Elon Musk.
Hipólito, sorriu e acrescentou: - Eu já tinha feito uma analogia entre o Elon Musk e o Rasputin. Um a fazer a cabeça do Trump e o outro a fazer a da czarina Alexandra Feodorovna, esposa do czar Nicolau II, da Rússia, mas a sua imagem é melhor. De facto, o filme que passa na cabeça dele é um velho filme do oeste americano, em que o artista entra no bar armado com duas pistolas e depois de matar os maus, volta a montar o cavalo em direcção ao sol poente, com toda a população feliz no “backstage” e o som de uma guitarra a trinar em decrescendo, sobreposta ao trote do corcel.
Estavam todos de acordo, mas Zeus não quis sair dali sem pôr todos os pontos nos iis e lembrou. - No caso presente, quem levou a Ucrânia àquela guerra, foram os USA quando achavam que a Rússia era a sua maior ameaça, mas quando se aperceberam das fragilidades do seu exército nesta guerra e do salto que a China deu, querem virar-se para o Indo-Pacífico e deixar os europeus cuidar da sua Defesa. Enganam-se se pensam que vão manter os mesmos privilégios económicos. O mais provável é que a Nova Rota da Seda venha a ser uma realidade, pois Trump mostrou à saciedade que os USA não são mais fiáveis que os chineses.
Despediram-se. Hipólito subiu as escadas em direcção ao quarto de dormir, quando encontrou a mulher, incomodada por não ter tido notícias dele.
- Deixaste o telemóvel em casa e eu não encontrei, nesse Congresso, um número para te contactar.! Podias ter telefonado!
O médico justificou-se: - Neste Congresso … andei à vontade dos deuses!
- Andamos todos!, replicou a mulher. Hipólito retrucou, para amenizar o ambiente: - Mas olha que nem todos! Muitos maridos andam ao mando das esposas, dando razão ao provérbio galego: “Se a tua mulher te pedir para te atirares da janela abaixo, reza para morares no rés-do-chão!”.
sexta-feira, 7 de março de 2025
Frase do Dia
Ser inimigo dos USA é perigoso.
Ser amigo ... é fatal!Henry Kissinger Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos nos governos dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford.
sábado, 1 de março de 2025
Lembranças do Olimpo - 40
Sobre o Mediterrâneo, Hipólito olhou para baixo, à procura
de barcos com emigrantes em risco de naufrágio e poucos viu. Pediu então a Zeus que passasse sobre o canal da Mancha para ver se havia gente a passar clandestinamente, quando ele lhe chamou a
atenção para um avião que passava em sentido contrário e à mesma altitude a que
voavam.
- Sabe quem vai ali!?! É o Volodymyr Zelenskyy, o presidente
da Ucrânia, a regressar dos USA em direcção a Londres onde se vai encontrar com os principais líderes europeus. Vem descoroçoado depois daquela vergonhosa
audiência na Sala Oval. Não quer ir lá dar-lhe uma palavra?, perguntou.
Hipólito não tinha assistido em directo, mas Zeus contou-lhe
em segundos, com todo o pormenor, tudo o que se tinha passado e o médico anuiu
ao convite e, no mesmo instante, estavam os dois sentados ao lado de Zelenskyy e
da sua comitiva.
Hipólito, segurou-lhe nas mãos e disse-lhe: - Estou em crer
que a grande maioria de quem assistiu àquela audiência está consigo. Aquilo foi
uma armadilha que lhe foi montada por um psicopata – narcisista, mas o modo
como o sr. presidente se comportou fez com que Trump levasse o tiro no pé.
Parabéns!
Zelenskyy surpreso olhou para os dois, como a perguntar como
é que eles surgiram do nada. Zeus acalmou-o, dizendo: - Eu sou Zeus, o rei dos
deuses do Monte Olimpo e, este aqui, é um médico amigo, que fui buscar a Israel.
Íamos para Portugal quando o topei neste avião e, como o dr. Hipólito se
interessa pelo que hoje está a acontecer no mundo, aproveitei para lho
apresentar, pois creio que ele gostava de lhe dizer algumas coisas no que
respeita à saúde mental de Trump.
Zelenskyy concordou. Zeus elevou o médico um pouco no ar, depois sentou- o numa cadeira alta para que ele pudesse falar de “cátedra” e o clínico assumiu ar professoral para afirmar: - Trump não é um “negociador”.
Trump tem todas as características de um “Manipulador” e tal foi muito evidente
naquela pequena discussão que teve consigo. Digo-lhe isto como médico que se
preocupa com o assunto. SE me permite, vou usar umas notas sobre o assunto,
para que não me esqueça de mencionar alguma das características do “Manipuladores”.
1. São intolerantes: Não respeitam
as opiniões, atitudes ou comportamentos dos outros. Vivem cheios de
preconceitos, reagem agressivamente, de forma ressentida ou pouco educada,
porque acreditam que não há nenhuma razão para impedir que a sua vontade prevaleça.
Muitas vezes são sexistas.
2. São encantadores nas fases iniciais da relação, mas ofendem-se com
facilidade se algo não se encaixa na sua verdade e mudam de humor em segundos,
passando de um estado agradável ao de fúria em questão de segundos.
3. São amantes da ordem, com base
no seu critério pessoal. Autoritários e intransigentes, perseguem uma única
verdade, a deles. Se não lhes obedecem, ficam furiosos.
4. São rígidos e têm pensamento
dicotómico - tudo está certo ou tudo está errado, sem meios termos. Não
conversam na busca de um consenso. Geralmente, os agressores cresceram em
famílias que os trataram assim.
5. São chantagistas – Provocam
medo nas vítimas, culpando-as por coisas que não fizeram ou de coisas que
fizeram, mas que não são graves.
6. Não aceitam a crítica como algo construtivo e reagem a elas como
a um ataque pessoal, procurando defeitos nos outros para os esmagar e submeter.
São especialistas em procurar interpretações arrevesadas da realidade.
7. Desconectam as vítimas dos
seus familiares e amigos, causando-lhes medo de falar com outras pessoas.
8. Têm baixa empatia (não
reconhecem as emoções dos outros), o que lhes permite fazer a vítima sofrer sem
qualquer ressentimento. São cruéis e não se arrependem, mesmo quando pedem
desculpa. Na próxima, agirão do mesmo modo.
9. São controladoras - Têm
necessidade de se sentir superiores, mas no fundo são inseguros.
10. Reagem impulsivamente,
sem ponderar as consequências, sem controle emocional. Os fins justificam-lhes
os meios. São capazes de agir discretamente em lugares públicos, o que torna a
vida da vítima uma verdadeira provação.
11. Vitimizam-se, tentando culpar
outros para justificar as suas ações.
Zelenskyy ouviu calmamente a explanação do médico e no fim
perguntou, na esperança de uma resposta positiva: - Mas será possível que algum
tratamento os faça alterar estes comportamentos?
Hipólito respondeu cabisbaixo: - Não! Os Narcisistas têm
uma total ausência de humildade. Pensam que são muito melhores que os outros e
queixam-se de tudo e de todos. Têm zero de empatia e tendem a relacionar-se com
os outros de acordo com a sua “utilidade” e, nesse sentido, a usá-los como
objectos pessoais.
Zelenskyy olhou para Zeus, como a perguntar se uma
intervenção divina não poderia por cobro à loucura de um homem. Zeus baixou
também os olhos e retorquiu: - Até o lavar dos cestos é vindima! Trump está
meter-se em demasiadas alhadas ao mesmo tempo e não tarda começar a sentir a
areia a fugir-lhe por entre os dedos. Vá para casa, sr. presidente, durma, e
vai ver que amanhã as coisas vão estar um pouco melhor. Como dizem os mortais: “De
hora a hora, Deus melhora!
E dito isto, pegou no braço de Hipólito e assim
como entraram, saíram do avião em direção ao extremo ocidental da Europa.
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Lembranças do Olimpo - 39
Bertrand Russel, Daniel C. Dennett, Christopher Hitchens, Richard Dawkins, Laérco Fonseca eram os palestrantes. Hipólito conhecia-os dos livros e das conferências que vira no Youtube, a criticar as religiões existentes e a defender códigos de conduta baseados no conhecimento científico e sociológico do Homem, mas nunca os vira dispostos a iniciar uma nova Religião, pelo que estava à espera de um passo, por pequeno que fosse, nesse sentido.
Após uma breve introdução em que se falou dos crimes efectuados em nome de Deus por alguns dos santos venerados na liturgia católica, apontaram a discussão para definir quais as melhores estratégias para chegar às classes mais desfavorecidas que voltam os olhos para o céu na esperança de uma solução para as suas aflições.
Definiu-se Secularismo, não como uma ausência de Fé, mas como uma moralidade à volta da racionalidade, das escolhas e da responsabilidade individual para uma conduta adequada para se ser considerado e empático com os outros. Mas, tais valores, embora entendíveis por o mais simples dos homens, perde força quando ele está perto dos seus limites e anseia por uma solução que dê sentido ao seu sofrimento. O Cristianismo que não se apoia só em sensações “moderadas” como a empatia, põe a tónica num “fervente altruísmo e amor sacrificial”. O Judaísmo não valoriza só a comunidade, mas também a imbui de “laços sagrados e escolhas que fazem vibrar as cordas do coração” e todas as outras não pedem aos crentes que sejam só respeitadores, pedem-lhes também “que a essência de cada alma se valorize com a alta dignidade da luz divina”.
Ora era esse o caminho que o Secularismo teria que fazer: deixar de se limitar aos aspectos racionais da nossa natureza e incluir no discurso conceitos capazes de “despertar emoções e exaltar paixões”.
A palavra secular vem do latim saeculum, que significa “uma geração”, “uma vida humana”, “um século” - um tempo finito ou mundano, em oposição ao tempo religioso cheio de eternidade e carregado de significado espiritual e, nesse sentido, ela também é limitante da “Esperança”, que é o grande motor da humanidade. Os deuses são o foco de “esperança”, quer através de uma intervenção directa ou pela promessa de uma vida extraterrena de grande conforto para premiar todo o sofrimento e o bem que se fez neste mundo. O Secularismo ignorava-o e essa era a grande limitação para a sua expansão como força mobilizadora de grandes massas humanas.
As palestras seguiam um tom morno, quando, do público surgiu uma voz. – Vocês podiam adoptar como ícon “Nossa Senhora”. Ela é uma mulher, não é uma deusa! E digo é e não era, porque, segundo consta, não morreu, foi levada para o Céu em corpo e alma, enquanto viva, num estado de dormição e, talvez por isso, é vista em vários locais do mundo. Maria é representada jovem e bonita e as suas 1100 denominações diferentes (em Portugal 744), têm por base a empatia, a benevolência e a aceitação da imperfeição humana. Além disso, tira a tónica da “força bruta”, masculina, que as religiões tendem a usar no seu proselitismo. Pensem nisso!
Todos se entreolharam a tentar identificar quem assim falava, pois a voz parecia ter a mesma intensidade em toda a sala. Bertrand Russel que presidia à mesa ajeitou o microfone e dirigiu-se à plateia:
- A mesa não conseguiu identificar quem acabou de falar. Agradecia que se levantasse para podermos encetar o diálogo!, mas nenhum dos deuses, mortos ou humanos presentes se acusou, e Russel assumiu de novo a palavra: - Uma vez que não foi ninguém aqui presente a proferir o discurso que acabámos de ouvir, concluo que a autoria foi da Inteligência Artificial. Devo, no entanto, avisar que a IA não foi convidada, pelo simples facto de ser perigoso valorizar as suas opiniões no devir humano. Talvez no próximo Congresso a sua participação seja benvinda, mas o estado da arte de hoje desaconselha que seja tida em consideração!
E, sem mais delongas, deu por terminada a sessão e cada um saíu para seu lado. Hipólito olhou para eles e pensou: - São como a União Europeia, permitem a transação de pessoas e bens, mas são incapazes de ter um plano de defesa comum.
Já era tarde e o corpo pedia-lhe o aconchego de uma cama. Saiu e, de imediato, foi abordado por Zeus, que lhe meteu familiarmente o braço enquanto lhe dizia: -Meu amigo, isto aqui no Médio Oriente, está a ficar muito instável. Israel e os USA estão em vias de um ataque ao Irão, o melhor é ir para casa, já!
Hipólito, apanhado de surpresa, ainda perguntou: - E as conversações que estão a decorrer na Arábia Saudita já terminaram?
Zeus respondeu, sorrindo: - Esqueça o que vem a público, que não passa de cortinas de fumo para o que se quer fazer. Neste momento, Israel está na mó de cima e quer ver-se livre dos grupos que há décadas o ameaçam e que estão sob influência e patrocínio do Irão e os USA necessitam de um aliado forte nesta zona, por causa do canal do Suez, que é a principal rota marítima do mundo, por onde passa mais de 10% do comércio mundial. Trump não vai perder a oportunidade de dar cabo do programa nuclear do Irão. Aquelas conversas com Putin sobre a Ucrânia visaram também o apoio da Rússia ao Irão e ele deve ter conseguido uma “não interferência” tácita em troca de parte do território da Ucrânia.
-E a Europa?, retorquiu o médico, a tentar tirar mais uns nabos da púcara.
- A Europa deixou de ser um problema para os USA, quando a Alemanha parou de comprar gás à Rússia. Qualquer colaboração mais intensa entre os países mais industrializados da Europa com a Rússia, tem o veto americano, independentemente das política de qualquer das partes. É que a Europa unida à Rússia seria uma força geopolítica indesejável, sob todos os aspectos, para os USA. Agora, agarre bem o tridente que vamos iniciar a viagem!
E, dito isto, elevou-se no ar, qual míssil intercontinental, em direcção ao ocidente, levando consigo Hipólito.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Lembranças do Olimpo - 38
O sol batia forte no átrio do recinto. Hipólito correu para
a entrada à procura do fresco da sala, onde ainda se não iniciara sessão da
tarde. No meio do palco, virado para o ecrã, que se estendia até ao topo do
edifício, Júpiter de consola na mão, jogava um videojogo. Ao seu lado, Alexey
Pajitnov, dava-lhe dicas para o ajudar a organizar as peças que caiam e se
encaixavam junto à base. Ao ver Hipólito aproximar-se, justificou-se:
- Estamos aqui a aproveitar o intervalo para testar o meu novo jogo! É como o
Tetris, mas agora tridimensional e virado para a economia! As peças representam
as “commodities”, isto é, as mercadorias, e o jogador tem de as encaixar nos
países que as importam, tendo em consideração as “tarifas” a que estão
sujeitas. Júpiter já acertou com algumas, mas como tudo está tremendamente
dinâmico, nem ele, que é um deus, consegue ser suficientemente rápido!
Júpiter cutucou-o, como a pedir nova ajuda e ele respondeu
prontamente:
- Cuidado com o Café da Colômbia que vai para os USA. Tem de rodar o mundo,
depressa, porque as tarifas aí subiram 25%. É melhor mandá-lo em direcção à
Europa. Falhou!, riu-se condescendente com Júpiter que suava ao ver descer o
Ferro do Brasil também em direcção aos USA.
- Rode o mundo outra vez!, gesticulou Pajitnov. – Mande-o para a China! Isso!
Isso! Boa!
Agora era o vinho Bordeaux que descia, seguido do Cobre do Chile. Júpiter fez tudo
para os encaixar na China, mas não foi a tempo e um grande “Game Over!” surgiu
no écran.
Júpiter recostou-se, rindo. - Este jogo é levado dos demónios! No princípio foi
fácil, quando desceram as terras raras. Há poucos a usá-las. Mas quando foi
preciso colocar o Ferro da Índia, do Brasil e da Rússia, começaram as
complicações. Oh Pajitnov, este jogo é impossível enquanto as taxas que todos
querem pôr sobre as mercadorias dos outros não estabilizarem. É que não dá
tempo para nos organizarmos!
Entretanto chegara gente e a sala compusera-se. Júpiter evaporou-se e, na mesa surgiram o Papa
Francisco, o Dalai Lama e o Aiatola Ali Khamenei. O tema da sessão era “Como
influenciar multidões com frases simples”. O Dalai Lama invocou os 89 anos e a
viagem para se limitar a repetir a dúzia de frases “espirituais” já conhecidas,
o Aiatola Ali Khamenei, mal se sentou, adormeceu e o Papa Francisco, às primeiras
palavras, ficou com falta de ar e a sessão teve de ser interrompida para o levar
para o hospital. O Dalai Lama fez questão em o acompanhar, e o Aiatola, que
estava espapaçado na cadeira, foi levado ao colo, por um segurança vestido com
uma burka, para um cadeirão ao fundo da sala.
O médico disse para consigo, enquanto folheava o programa: - É gente demasiado
velha para estas andanças, ainda por cima com sequelas graves de atentados.
Devem ter sido convocados só pelo prestígio! Até aos 80 anos, muitos ainda se
aguentam, mas depois é difícil encontrar quem ainda mantenha a energia
necessária para lutar por soluções adequadas aos novos tempos. Os que se
mantêm, arrastam-se no meio de sequazes temerosos que uma nova liderança os
retire do poder.
A sessão seguinte era sobre o “Secularismo” e Hipólito não a
queria perder. Enquanto aguardava, fechou o programa e os olhos para acabar a sesta que tinha
interrompido.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
Para sempre
… Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a frase, e foram felizes para sempre, isto depois do Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas e a vida continua, e os dois são infelizes até se separarem. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância, lá na Gabela, durante as férias grandes, enquanto tentava construir uma cabana nos troncos de uma acácia. Fui feliz para sempre nas margens de um riacho, uma corrente de água tão humilde que dispensava o luxo de um nome, embora orgulhoso o suficiente para que o achássemos mais do que simples riacho - era o Rio. Corria entre lavras de milho e mandioca, e íamos para lá caçar girinos, passear improvisados barcos a vapor, e também, à tardinha, espreitar as lavadeiras a tomar banho. Fui feliz com o meu cão, o Cabiri, fomos os dois felizes para sempre perseguindo rolas e coelhos através das tardes longas, jogando às escondidas no meio do capim.
…
in "O vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Lembranças do Olimpo - 37
“Não é o homem que escolhe o seu destino. É o Destino que escolhe o homem. A tragédia, por mais paradoxal que pareça, provém, não dos pontos fracos do protagonista, mas dos seus méritos. As pessoas são empurradas para a tragédia, não pelos seus defeitos, mas pelas suas virtudes. É uma suprema ironia que o descalabro tenha origem, não na preguiça ou na estupidez, mas na coragem e honestidade”. Hopolito tinha sublinhado este pequeno texto, num dos livros de Haruki Murakami.
Putin vinha de uma série de vitórias no campo político, económico e até social e recusava qualquer compromisso que pusesse sombra na sua aura. Hipólito estivera atento às leis rígidas adotadas pelas autoridades russas em 2003, que fizeram cair de forma significativa o número de mortes relacionadas com o álcool em todo o país. Durante as décadas de 1990 e 2000, o país viveu uma "crise de mortalidade". Nessa época, metade dos homens em idade produtiva morria prematuramente por causa do álcool. Entre 2003 e 2016, segundo a OMS, o consumo por pessoa caiu 43%, e, como médico, considerava tal facto um feito histórico, mesmo sabendo que os números por si só não especificam nada e que tudo depende do que fazemos com eles.
Hipólito tentava ver para além da encenação de cada actor. Considerava-se um homem de ciência com obrigação de sondar para lá da interpretação “óbvia” dos fenómenos.
Reviu os dados deste jogo: Os EUA têm uma população de 345,5 milhões, os russos são 143,60 milhões, na União Europeia há 449.2 milhões. A China tem 1.600 milhões.
O PIB dos EUA é 10 vezes o da Rússia e 1,5 vezes o da União Europeia e da China. O PIB per capita, do Estado mais pobre dos EUA é superior ao das cinco principais economias da Europa, com exceção da Alemanha. O PIB per capita da Rússia, pouco maior é que o da Bulgária, um dos países mais pobres da Europa. Os EUA investem 3.4% do PIB em Defesa. A Rússia 5,9%. Os países da União Europeia menos de 2%. A China 1,7%.
Estes eram os números que Trump tinha por maus e que considerava necessário alterar para os USA serem “great again!”, de acordo com o “senso comum” da elite que o rodeava, arriscando atritos com os aliados tradicionais e criando desconfiança, quando ela é a base de qualquer "negócio".
Não ter em consideração a “marca” “made in USA”, parecia-lhe um enorme erro estratégico. A resposta ao bullying do Alan Musk, era já evidente na Europa, onde a Tesla vendera 50% menos automóveis, em Jan/2025 que em Jan/2014. Se ele tivesse em conta que a publicidade é a parte mais cara de um perfume, talvez não levantasse tanto a voz contra situações que só existem por uma questão de prestígio.
Mas o melhor era não fazer prognósticos neste jogo “muito dividido”, como falam os comentadores de futebol. E foi com estes pensamentos que regressou ao quarto para uma sesta, antes da sessão da tarde.
Cochilava há meia hora quando sentiu um vento azulado passar-lhe pela fronte e topou Zeus a entrar, suavemente, por uma das paredes.- Olá meu amigo!, disse o médico. - Então veio acordar-me, com medo de que eu não comparecesse à sessão da tarde?
- Nada disso!, respondeu Zeus. - Vim para me despedir! Diziam que os meus deuses eram instáveis e imprevisíveis, mas foram eles que deram as bases para a vossa civilização. Agora os dois deuses com maior cota no mercado, ou andam distraídos ou desactualizados. O dinheiro é o novo Deus! Tu já viste o poder que Trump tem nas mãos para fazer subir ou descer as acções na Bolsa de Valores em qualquer parte do mundo? Se ele te dissesse o que vai dizer à sexta feira, depois da Bolsa fechar em Nova York, tu podias apostar uns 10.000€ no efeito das palavras dele e, dois dias depois, estavas a receber uns 200.000€. Ele a ti não te diz mas, de certeza, que diz a quem lhe está mais próximo. E os investimentos nesse jogo são, por certo, muitíssimo maiores. Não quero estar por perto quando o mundo se revoltar. Se não for um Armageddon, vai ser coisa parecida! É que no “mercado de valores” o medo é contagioso e o ladrar faz mais mossa que a mordida!
Despediram-se com um até um dia, na certeza de um reencontro. Hipólito, arranjou-se. Estava atrasado para a sessão da tarde.
sábado, 8 de fevereiro de 2025
Lembranças do Olimpo - 36

Putin, fora informado tardiamente daquele concílio. Alterara a sua agenda, mas contratempos de última hora tinham-no retido em Moscovo e chegava atrasado. Olhou para as cadeiras mais próximas. Na segunda a contar da coxia reconheceu São Nicolau em vestes episcopais. Putin interpelou-o: - O Trump apareceu aí?. São Nicolau fez um resumo do que se tinha passado e aconselhou-lhe calma, lembrando que comportamento gera comportamento e que o “Soft Power” é uma realidade. Putin olhou para ele de soslaio, e resmungou entre dentes: - Queres lá ver este vendido à Coca-Cola a mandar bocas, armado em Secretário de Estado. Lá por ser Santo Padroeiro da Rússia não está autorizado a “bitaites”!, e desceu lentamente até à primeira fila. Sentou-se, provocador, abriu o casacão e retirou de lá uma AK47 que colocou na cadeira ao lado
Quando o deus Polinésio terminou a comunicação, Guterres fechou a sessão da manhã e a sala esvaziou-se lentamente. Putin manteve-se sentado. Hipólito desceu ao seu encontro, com o bloco de notas, qual repórter da agência internacional e questionou-o: - Sr. Presidente: Será possível uma pequena entrevista? Prometo não o demorar mais de 15 minutos!
Hipólito queria perguntar porque é que Rússia, o país com maior território do mundo, diz que a perda de influência na Ucrânia põe em causa a sua “existência”? Porque é que possuindo enormes reservas de petróleo (é o 6º maior produtor), tem um PIB per capita inferior ao da Bulgária? Porque é que a Rússia investe na Defesa 4,3% do seu PIB? e se pensa ter condições económicas para resolver os problemas que causou com a guerra na Ucrânia?
Putin, assim que o sentiu aproximar, levantou-se de um salto e correu até à porta por onde Trump saíra e encontrou-o a assinar uns livros pretos A4, que entregava, junto com a caneta, a um dos seus secretários. Trump levantou os olhos, sorriu-lhe e levantou-se para o cumprimentar efusivamente. – Ora, ainda bem que veio! Estou aqui a assinar uma papelada, para dar nova ordem ao mundo. Aquilo que se fala muito nos últimos tempos: a Nova Ordem Mundial! Já me dói a mão e ainda tenho aquela resma ali em frente e estas duas caixas de canetas aqui ao lado!
Putin, sorriu condescendente, e, certo de que aquela euforia, mais cedo ou mais tarde, ia dar para o torto, respondeu: - Eu vim cá mais para ouvir, que para falar! Já me contaram a sua intervenção. Concordo plenamente! Isto é para quem tem unhas! Pelo meu lado, desde que assumi o poder que não as corto!, e estendeu as mãos para as mostrar. Eram grossas e afiadas. Trump abriu uma das gavetas, tirou umas luvas com garras, calçou-as, retrucando: - São indestrutíveis! Com elas posso rasgar o canal do Panamá, puxar a Gronelândia e o Canadá para dentro dos EUA, fazer uma Riviera em Gaza e até apontar novos caminhos ao povo chinês!
E no que respeita à Rússia? Perguntou Putin.
- Isso ainda não decidi! Tenho de me informar da importância das "terras raras" da Ucrânia nos negócios! Só depois é que me pronuncio.
- Mas olhe que essa a zona mineira já foi conquistada por nós! Replicou Putin.
- Não se preocupe! Se necessário, nós compramos e vocês vão ter que vender! A bem ou a mal!
Hipólito tinha ouvido que chegasse. Virou costas e pensou: Estamos a um passo de uma tragédia. Poucos sabem afrouxar os seus ímpetos na plenitude das suas vidas! O mais frequente é que a ansia de novos triunfos, os conduza à autodestruição.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Lembranças do Olimpo - 35
terça-feira, 14 de janeiro de 2025
Os livros e a Helena
Tropecei neles, hoje, ao limpar o Mail. Não resisto a
publicá-los, sabendo que eles já anda pela Net pela mão dela.
Antes de mais, e principalmente porque gosto de começar com
declarações de firmes convicções, quero dizer que não só odeio correntes como
até, à mais leve sugestão, amiga de 'Helena, sabes o que é que tu podias
fazer?' o meu cérebro dispara, ainda antes de saber o que é 'olha, é
exactamente o que eu não vou farei!' e assumo que sou teimosa como um burro. Ou
o Toino. Assim, quando a Filipa, que sabe quem é o Toino, me sugeriu que eu
entrasse no jogo dos livros, nomeando-me com o delicioso 'o caso das
criancinhas desaparecidas' do não menos delicioso Luiz Pacheco, eu pensei 'vais
ter sorte, vais...'
O problema é que eu odeio correntes e sou teimosa vários (diversos mesmo)
degraus abaixo do meu amor aos livros e sendo que o amor e o ódio são a mesma
coisa mas em sentido contrário, os livros ganharam.
No entanto, diz a corrente que não se deve explicar o porquê da escolha e
apenas debitar 10 livros em 10 dias, mas a minha teimosia, na escala, é bem
maior do que as regras do jogo e se quiserem 'exclassifiquem-me'!, que para
mim, falar de livros é das coisas que eu mais gosto e este mural é meu e aqui
sou eu que mando.
Tendo isto esclarecido - a teimosia, o ódio às correntes, o mau hábito de falar
quando me pedem silêncio e o aviso de que este post tendencialmente pende para
o longo - quero dizer que vou começar pelo início e que quem não tiver pachorra
para ler, pode apenas olhar para a bela foto que tenciono tirar mais tarde
deste belíssimo livro e seguir com a sua vida. Prometo não dizer nada de
terrivelmente importante ou revolucionário ou sequer interessante (quem é que
tem conversas interessantes numa 3ª feira à noite, anyway?!?)
No início eu não gostava de ler. Em primeiro lugar porque
não sabia as letras (só na segunda classe me descobriram pitosga) e em segundo
lugar porque a minha irmã mais velha queria, por essa altura, ser princesa
(depois passou, felizmente) e, como tal, os seus livros que eu, como segunda
filha, herdei, eram de princesas e eu era... digamos bichos e fato de treino,
princesas e principes não me entusiasmavam.
A minha mãe cresceu numa aldeia, num tempo em que livros eram coisas de gente
que não tinha nada que fazer e a minha avó não lhe dava descanso - quando não
havia o que fazer a minha avó inventava - dar de comer aos coelhos, fazer um
recado, tratar dos irmãos, arrumar a cozinha, ir à horta, um rol que não
acabava nunca, como o pó - e os livros, pedidos na carrinha da biblioteca
itinerante da Gulbenkian que passava na aldeia, que se chama Bairro, de seis em
seis semanas à 5ª feira, eram a sua paz. Lia-os no quarto de banho, voraz,
demorando-se porque a minha avó lhe perdoava a suposta prisão de ventre,
deliciando-se com outros mundos que não as couves, a rega e o pó. Por
isso, a minha mãe adorava livros e não percebia como era possível eu não gostar
deles. Todas as sextas-feiras íamos à Bertrand à frente da Matriz e a minha mãe
dizia 'Lena, escolhe um! O que quiseres! Tantos livros, já viste? Há-de haver
de que tu gostes.'
Este foi o primeiro. Fui eu que o escolhi. Tinha 7 anos e ainda hoje trago no
coração a imagem da rosa amarela à janela - Eugénio de Andrade com ilustrações
de Júlio Resende. Quem começa bem, raro se entorta e, no que toca a livros (só
nisso!) muito me orgulho do percurso.
Eu hoje gosto muito de livros. Agora não posso comprar muitos porque a minha
enfermeira querida me fez prometer que só comprava mais livros quando acabasse
de ler 4 (específicos) dos 17 que tinha na mesinha de cabeceira, sob a pena de
ter de lhe comprar 2 por cada que comprasse para mim - já levou com os 2
primeiros porque, no outro dia, não resisti ao 'o direito à preguiça,' mas
estou em sérias negociações com ela. É que um dos 4 da lista é uma seca e eu
entretanto já li outros 4 (fora da lista) e tenho esperança que a menção desta
penosa situação faça o seu coração amolecer... (sim, Anabela?)
Enquanto cresci (sim, eu sei, pouco!) a minha mãe, que não nos dava tudo o que queríamos
(o vício da música, por exemplo, saía-me da semanada), dizia que os livros eram
os que eu quisesse. Ainda hoje, que lê menos - já não tem de se esconder no
quarto de banho - regozija-se quando lhe conto as aventuras que ando a ler e
quando me queixo do preço dos livros, ela ri-se e diz 'vá, eu pago esse, depois
contas-me'.
Amanhã, ou noutro dia qualquer, quando me apetecer (é a
coisa de isto ser o meu mural) falo-vos de outro livro. Se calhar não vou ter
uma fotografia tão bonita. Gosto tanto de alguns livros que os faço circular em
mãos nem sempre 'desinvejosas' e até este, depois de o passar à minha irmã mais
nova e anos depois aos meus sobrinhos, encontrei-o de novo, talvez 30 anos
depois, no consultório dentário da minha irmã mais velha (senhores, não só é um
excelente sítio para tratar os dentes como tem excelente literatura na sala de
espera) e só muito recentemente voltou à minha estante. Tenho, sinceramente,
alguma esperança de que alguns destes 10 livros, às custas destes textos
publicados, sem apontar dedos, voltem para mim. Se tal não for possível, não
tem mal, foram bem emprestados.
Ai que me esqueci das nomeações... vai Ana! Conta-me (e já
agora empresta-me) os 10 livros da tua vida, como fazemos tão frequentente,
agora que deixaste a coisa de ser princesa! ♡
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MACONDO, 'a aldeia de vinte casas de barro e taquara, construída
à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras
polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos' onde aconteceram 100 anos
de inacreditáveis acontecimentos, é o cenário do meu #2 livro da lista que
dificilmente se ficará pelos 10.
O meu pai nunca soube que idade nós tínhamos e sacava livros da estante dos
escritório com sede de nos ensinar tudo o que havia para ensinar, talvez
achando que lhes sairíamos da mão demasiado cedo para nos sabermos proteger
deste mundo estranho. Dava-nos os livros todos em catadupa. O meu pai ainda não
sabe que idade eu tenho. E se em tempos me achou antecipadamente preparada para
Gabrieis Garcia Marquez, Kunderas, Günter Grasses e outros, este ano ligou-me
um dia à noite para pedir para eu não ler o 'quem governa o mundo?' do Noam
Chomsky que me havia emprestado à tarde, com o argumento de que eu era
demasiado nova para me desiludir com a estupidez do mundo. (♡)
Já para Macondo mandou-me quando eu tinha
uns 13 anos porque nunca é demasiado cedo para se mergulhar no realismo mágico
do Gabriel Garcia Marquez. Li os “Cem Anos de Solidão”, o “Amor em Tempos de Cólera”,
a “Crónica de uma Morte Anunciada”, o “Outono do Patriarca”, “O general no seu
labirinto”, “Do amor e outros demónios”, a “Aventura do Miguel Linttin” e os
magníficos “Doze contos peregrinos”, tudo de rajada, uns a seguir aos outros, continuamente a aprender que o mundo é muito
mais do que os olhos vêem. Talvez esteja errada e a memória me atraiçoe, mas
penso que durante mais de um ano não li mais nenhum autor. Vivi meses a fio
dentro do realismo mágico por dentro e à noite fechava os olhos e encontrava
aventuras com gelo, mortalhas, mulheres loucas descabeladas, quartos
assombrados, calor tropical e Arcádios e Josés Buendias de 5 gerações,
prostitutas e galeões e fugas pela janela e pelotões de fuzilamento e Úrsulas e
amores impossíveis.
Se eu fosse correcta a jogar este jogo dir-vos-ia que o livro a celebrar hoje
seria os “Doze Contos Peregrinos”, ou mais especificamente o conto 'Só vim
fazer um telefonema', que me marcou para sempre. Eu ainda não era louca, tinha
13 ou 14 anos e ainda não devia ter medo de um dia acabar compulsivamente
internada por engano num hospício, mas os Cem anos de Solidão haviam-me falado
do destino e eu vivia dentro daqueles livros.
O meu pai diz que ninguém foge ao seu destino e quem tem de morrer de um tiro
não morre de uma facada e eu só descanso porque sei que a minha tia Lena me
há-de salvar, assinando que é engano, que eu não sou louca e que foi só um furo
no pneu do carro numa noite de chuva.
A delícia trágica deste livro, as bruxas e as loucas e os feitiços
apaixonantes, as mil aventuras que cabem naqueles 100 anos de um mundo estranho
fizeram a delícia dos meus 13 anos e dos meus 36, quando me deleitei a relê-lo.
Hoje fui a casa dos meus pais e, como é hábito, antes de sair, dei um salto ao
escritório. A minha irmã entrou passados uns minutos. Disse-lhe 'não sei dos
cem anos de solidão' e ela com um sorriso ' também dos teus? também vinha à
procura dele para o "jogo", enquanto fotografava mais dois livros. Depois de
desistir de o procurar, peguei em 3 livros para pedir ao meu pai e ela disse
'Lena, estes livros não são do pai. Isto é uma biblioteca partilhada! Não
podes levar livros assim!.' Ela tem razão. Os livros que ali estão são de nós
todos. Pedi-os emprestados e um foi-me recusado 'Ai Lena, não leves esse que
acho que ainda não o acabei!' e eu 'oh pai!, tens de ler! É um dos meus
favoritos.'
Os cem anos de solidão fui eu que perdi. Prometo, Ana e pai, repô-lo em breve,
que a nossa biblioteca não pode passar sem ele.
Hoje a nomeada é a Joana, que tinha uma cábula
para saber quem era quem nos Cem anos de solidão para não se perder na
deliciosa malha do mundo mágico do Gabriel Garcia Marquez.
Ps - mas é só porque a tia Lena não tem facebook e eu não posso mandar a bola para ela. Mas posso pedir aqui para ela nos dizer quais são os 10 livros da vida dela, porque aposto que todos gostávamos de saber.
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Os livros são das coisas mais bonitas do mundo e eu não sei se vou conseguir explicar porquê - às vezes é muito difícil simplificar evidências. Ou qualquer outra coisa. Explicar coisas é muito difícil e os livros são objectos magníficos porque existem pessoas (os escritores) que se dispõem a oferecer um mundo que existe só dentro deles a um público que desconhecem e tirar coisas da nossa cabeça e fazê-las compreensíveis é uma arte.
Eu, com frequência, aborreço-me deste meu mundo. Viver todos os dias cansa, dizia o Pedro Paixão, mas eu estou convencida que é porque todos os dias vestimos a mesma pele, a mesma farda, a rotina das mesmas ruas e de todas as outras coisas que em tempos já foram novidade e que agora são só banais, como os cantos dos dias que já conhecemos de cor.
Ler é ensinar aos olhos outros mundos, vestir outras peles, morar em casas
diferentes, acordar no Japão, viajar à idade média, ser rainha ou pajem e velho
e homem e mulher ou criança, ser perverso ou anjo, metódico ou suicida e voltar
para casa a qualquer momento, com a alma cheia de experiências novas.
O 'Em Nome da Terra' foi, que me lembre, o primeiro livro que me roubou a mim
própria. É um livro de uma sobriedade brutal acerca do fim da vida, da
decadência do corpo, das rugas e peles, dos falhanços, do viver à espera do fim
já só agarrado às memórias que também já falham e às saudades do corpo jovem e
do corpo jovem e das peles firmes da mulher que já morreu.
É uma história de amor e começa assim 'Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme
de te amar. E então pensei: vou-te escrever.', que é uma das frases que se me
colou ao peito para sempre.
Aos 15 anos tive rugas, reumatismo, uma perna amputada, vivi num lar e
senti toda a tristeza do fim de mim - dor de costas, de fígado, de alma, com
uma lucidez incrível. É uma experiência estranha aprender-se a ser velho por
debaixo de uma pele ainda tão esticada e num corpo com articulações
lubrificadas.
Este livro matou o meu medo da morte e ensinou-me a amar a
lentidão dos gestos dos velhos e disse-me que tinha a minha vida toda pela
frente e que a devia encher de amor e histórias para ter com que me entreter
quando chegar o dia em que espero o fim, deitada numa cama só com as minhas
memórias.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Anjo da Guarda
Anjo da Guarda,
Minha companhia.
Guarda a minha alma
De noite e de dia!
A artista é "Da Loba"
Inteligência, segundo Jean Piaget é a arte de saber o que
fazer, quando não sabemos o que fazer. Isto é: a capacidade de encontrar uma
solução para uma situação complexa por que não passámos antes.
E a inteligência “treina-se” no dia a dia, aceitando
desafios, mais ou menos complexos. As “manualidades” são um deles. Desenhar à
vista ou fazer um boneco de pano, que não seja uma cópia de algum já
conhecido, exige um esforço que o cérebro agradece, principalmente quando pretendemos um resultado “original”. É que não é
difícil ser “um Elvis”. Difícil é ser o Elvis.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
A propósito de Ariana
Ariana vem do grego Ariádne, a partir dos
elementos ádne, que significa “santa”, “casta”, “pura”, e ari,
que é um superlativo, equivalente ao “íssima” no português. Dessa forma, o nome
Ariana ganha os significados de "santíssima”, "a mais sagrada",
"castíssima", "a mais pura" e "puríssima". É essa
a opinião da maioria dos estudiosos da origem dos nomes das pessoas.
Conta-se que Minos desejando ser rei de Creta rogou a
Poseidon, o deus dos mares, das tempestades, dos terramotos e dos cavalos, que
enviasse um sinal divino que mostrasse a todos que ele era o escolhido pelos
deuses. Poseidon atendeu-o com uma condição: faria surgir um belo animal e
Minos deveria sacrificá-lo imediatamente ao deus. Minos concordou, e viu sair
das águas um magnífico touro branco de chifres dourados, porém, diante de
um animal tão esplêndido, não cumpriu a promessa. Guardou o touro para si e
sacrificou outro animal. Poseidon ficou furioso por ter sido
enganado e, para o castigar, fez com que a sua mulher Pasífae, se apaixonasse
loucamente por esse touro.
Dessa relação nasceu um monstro, meio touro, meio homem, com um apetite voraz só aplacado com carne humana. Horrorizado e cheio de vergonha, Minos encomendou a Dédalo, grande arquitecto e inventor ateniense, a construção de um imenso lugar de reclusão de onde não fosse possível escapar. Dédalo concebeu o Labirinto, onde corredores ziguezagueantes se entrecruzavam impedindo encontrar a saída a quem nele entrasse. O Minotauro foi deixado no Labirinto.
Quando o terceiro sacrifício se aproximou, Teseu (grande herói de Atenas) apresentou-se como voluntário, decidido a pôr fim a esta maldição. Quando os jovens condenados desfilavam perante os habitantes da cidade de Creta, a caminho do Labirinto, Ariadne, ao ver Teseu, apaixonou-se imediatamente por ele. Chamou-o à sua presença e prometeu salvá-los se ele casasse com ela e a levasse para Atenas. Teseu concordou e Ariadne entregou-lhe um novelo de fio que devia ser atado num das extremidades à porta do Labirinto e depois desenrolado à medida que se fosse afastando.
Teseu entrou ousadamente no Labirinto em busca do
Minotauro. Quando chegou junto dele, por sorte, o animal dormia. Teseu caiu
sobre ele e, com os punhos, sovou-o até à morte. Depois, seguiu o fio até à
porta de saída, levando os jovens que o seguiram. Chegados ao barco, fizeram-se
imediatamente ao mar, levando Ariadne que já os esperava.
Na viagem de regresso, aportaram à ilha de Naxos, e o que aconteceu depois tem várias versões. Numa, Teseu abandonou Ariadne quando ela estava a dormir "por não ter alegria nela" e Dionísio, deus do vinho, das festas, da natureza, da fecundidade, da alegria e do teatro, numa das suas muitas deambulações, encontrou-a desolada numa das praias, socorreu-a e enamorou-se dela. Depois casaram e Ariadne nunca mais foi vista. Mas ao que consta, foram felizes e tiveram filhos.
Mas o que não disse foi
ter sido Dédalo a aconselhar Ariadne sobre o modo de sair daquele recinto e,
quando o rei Minos descobriu o seu envolvimento na fuga, prendeu-o no Labirinto
juntamente com o seu filho Ícaro, vigiando qualquer possibilidade de fuga por
terra ou por mar. Então Dédalo construiu dois pares de asas, tendo o cuidado
de avisar Ícaro, para não se aproximar do sol. Mas o jovem Ícaro, quando se apanhou a voar não resistiu a
subir cada vez mais alto, a goma das asas derreteu e acabou por cair no mar, para logo as águas se
fecharem sobre ele. Dédalo, desgostoso, voou até à Sicília, onde foi recebido
pelo rei com toda a cordialidade.
Minos por seu turno, ficou
furioso e decidido a encontrar Dédalo. Como o sabia um grande inventor, mandou
proclamar, por todo o lado, uma grande recompensa a quem conseguisse fazer
passar um fio por um buzio. Dédalo informou o rei da Sicília que era capaz dessa proeza – fez um pequeno orifício na extremidade fechada do buzio, agarrou
o fio a uma formiga, meteu-a pelo buraco e tapou-o. Quando a formiga apareceu
na outra extremidade, o fio tinha passado por todas as voltas e reviravoltas.
Só Dédalo era capaz de fazer um
prodígio destes!, exclamou Minos, e resolveu ir, ele mesmo, à Sicília para o
prender. O rei da ilha, porém, recusou-se a entregá-lo, e Minos pereceu durante
o combate.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Ciência
Na Antiga Grécia, Ciência significava apenas conhecimento. Um grego culto não procurava outra coisa que não fosse o prazer de saber e sentia-se particularmente orgulhoso de dominar uma vasta quantidade de conhecimentos completamente "inúteis". Nesse sentido a ciência favorita era a astronomia, já que era tão abstrata como a álgebra.
Podemos dizer que o ideal grego passava por não ter uma utilidade para as coisas úteis. O escravo era aquele que aprendia coisas úteis; o homem livre era aquele que se podia dedicar à aprendizagem de coisas inúteis.
Este é ainda o ideal de muitos homens nobres no contexto da ciência, no sentido em que procuram alcançar a verdade, do mesmo modo que os grandes da civilização grega a desejavam; a sua atitude serve como um protesto contínuo contra a vulgaridade do utilitarismo.
G.H. Chesterton (1874 –1936)
domingo, 6 de outubro de 2024
Lembranças do Olimpo - 34
Kissinger desceu do púlpito e, ao pisar o último degrau do palco, esfumou-se em tons de azul e branco em direcção ao hexagrama desenhado nas costas da cadeira onde se tinha sentado. Ouviu-se novo toque de trombetas e Phoebe, que tinha retomado o palco, anunciou o novo orador: Xi Jinping. Depois, deu um salto, três mortais de costas e um encarpado e veio sentar-se ao lado do dr. Hipólito.
-Eh lá! Exclamou o médico, enquanto se
afastava. – Era escusado vir nesse rompante para cima de um mortal!
A deusa pediu desculpa e, depois de
bem sentada, justificou-se: - Eu gosto de sentir o pulso ao povo, e estas
minhas entradas servem para lhe estimularem a adrenalina. Você, dali de cima,
pareceu-me um bom exemplar e esse camarada aí ao lado também! Mas vamos ouvir o que Jinping nos vem dizer, que o Kissinger aqueceu um bocado o
ambiente.
Xi Jinping, que estava na mesa entre o
Mao Tsé Tung e o Elon Musk, levantou-se e, em passadas largas, dirigiu-se ao
centro do palco. Estava vestido com roupa tradicional chinesa hanfu, em
tons de branco e preto, bordada a ouro, como a mostrar que a cultura chinesa
tem alternativas ao cerimonial ocidental. Ajeitou o microfone junto
a bochecha e, sem mover qualquer músculo da face, iniciou o seu discurso.
Hipólito pegou no lápis e no papel
para anotar os tópicos, e cedo se apercebeu que ele se iria confinar ao seu “Pensamento”
sobre o socialismo
com características chinesas para
uma nova era. Eram quatorze parágrafos que ele já conhecia, ditos em tom monocórdico e com a
“poker face” que o caracteriza.
Phoebe olhou para o papel vazio e
perguntou: - Então? Não tira apontamentos?
Hipólito respondeu: - Ele não está a
dizer nada de novo! Eu esperava algumas dicas sobre abertura a outros partidos mas, pelo andar da carruagem,
ele não vai por esses caminhos!
A deusa sorriu, condescendente.
- Está a desvalorizar as dificuldades
que ele teve de ultrapassar para criar as infraestruturas que hoje a China
dispõe? Olhe que não há na História da Humanidade ninguém que, em vinte anos,
tenha feito o que ele fez, ainda por cima tendo herdado um partido onde a corrupção
era generalizada. Não foi fácil livrar-se do desperdício e aumentar a influência da
China no mundo.
- Eu não apoio o culto da personalidade que faz perpetuar no poder. O homem já é mais popular que o Mao Tsé Tung. Se morrer o país tem um abalo difícil de recuperar. Respondeu o médico.
- Não se preocupe com isso dr.! Ele está
para lavar e durar. Tão cedo não lhe vai dar um treco. É “pragmático”, tem uma enorme
estabilidade emocional e controla o PC Chinês. Tem tudo para se aguentar.
Xi Jinping, continuava a explanar o seu
“Pensamento” que basicamente consistia em “Garantir a liderança do Partido
Comunista da China em todas as formas de trabalho na China”.
Hipólito virou-se para a deusa e perguntou:
- Será que, com os seus poderes sobre-humanos, não é capaz de perscrutar se o
que ele pensa é independente do que diz?
Phoebe riu-se. - Os pensamentos do
momento, não lhos consigo dizer, mas digo-lhe os que habitualmente o orientam.
Hipólito, cutucou o Harari: - Está
visto. O Jinping não vai dizer nada que não tenha já dito. Mas a minha parceira
aqui do lado é capaz de nos dar outras notícias. Quer ir lá fora connosco?
O professor recusou, alegando que os
deuses enganam frequentemente os humanos e preferia continuar a ouvir o chinês,
porque há coisas ditas nas entrelinhas que fazem toda a diferença e o diabo
está nos pormenores.
Saíram os dois, à formiga, para o
átrio, onde um sofá em pele de girafa os esperava. A deusa sentou-se e
segredou-lhe: - Aqui ninguém nos ouve e até a pele deste sofá é de um bicho
mudo!, brincou. – Mas, respondendo à sua curiosidade, posso-lhe dizer que o Xi
anda num sino, com a Videovigilância e a Inteligência Artificial, que lhe garantem
uma ordem nunca antes conseguida. Ri-se das democracias ocidentais e dos
bloqueios que elas causam às tomadas de decisão. Chama-lhes “sacos de gatos” e aposta
na sua decadência. Para já pretende dominar o negócio dos automóveis no mundo.
Depois vai tentar o mesmo nos aviões e por fim aumentar a importância da China nos serviços. O Xi pensa no sucesso do formigueiro e não se coíbe
de sacrificar formigas. São mil e seiscentos milhões delas. Os conflitos actuais no Médio
Oriente e na Ucrânia, só lhe dão vantagens e espaço para se meter cada vez mais
em Africa. Espere mais uns anos e vai ver a volta que ele ali vai dar. O
"socialismo ao estilo chinês” tem horror à desordem e é pouco preocupado com as liberdades e garantias que tolhem o Ocidente. Ele diz, para si próprio, que África está à espera de quem a arrume!
Hipólito, aproveitou para se
certificar de uma notícia que lera num jornal. – É verdade que nas cidades
chinesas há 440 câmaras de vigilância por cada 1000 habitantes?
- Sim! E, com a ajuda da AI já monitorizam os movimentos dos cidadãos que quiserem, desde criminosos a potenciais opositores políticos. Mas não são só eles. Em Londres também há Videovigilância, só que em vez das 440 câmaras têm 13 por mil e regras bem mais apertadas. Mas o mundo está em rápida transformação e o amanhã é sempre uma incógnita. Vai ver que o "crédito social" vai aparecer noutras regiões para além da China.
Dentro da sala ouvia-se o barulho das palmas.
Hipólito levantou-se e apressou-se para chegar ao seu lugar e perguntou ao
Harari: - Ele disse alguma coisa de novo?