segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Uma cheia no Tejo
























Este texto é do meu avô, e reporta-se a uma cheia na Vila de Constância, no início do século XX.
Tentei transcrevê-lo tal como ele o escreveu, mas não resisti a revê-lo, e a dar-lhe uma forma mais moderna, como (talvez) o conseguisse escrever, caso a fortuna me tivesse dado o seu poder de observação.
...

Ainda me lembro da vila, mesmo longe de lá, há quase meio século!

Debruçado sobre o lado norte da Praça Nova, havia um varandim assentado sobre uma parede de quatro metros de altura, que a ladeava em todo o comprimento, restos da antiga igreja paroquial, profanada e destruída pelo tempo que, com a sua galilé, ocupara outrora a praça toda. Era um dos baluartes contra o assédio das cheias que, só nos seus caprichos a conseguia escalar.

Quem, naquela manhã, a mirasse, vê-la-ia tão apinhada de coisas, que pensaria que um antípoda escoiceara pelo subsolo e fizera ali aflorar uma feira da Ladra. Tudo aquilo que por mais pesado ou volumoso, os andares superiores das casas não comportavam, tinha sido acogulado a trouxe-mouxe sobre a calçada. A um canto acumulavam-se umas pipas em semicírculo, e, no meio delas, como que a arengar, uma dorna com o fundo para o ar, sustentando um barril e dois remos que apontavam, do outro lado da praça, duas torres de caixotes, bancos, fateixas, paneiros, cepos e uma infinidade de objectos bolorentos, há muito esquecidos nos cantos das casas, por cujos desvãos se metia, a garotada. Era uma reunião de vasilhas, chamadas a capítulo, para resolverem o destino daquela miscelânea de coisas ali arrecadadas.

A vila emergia como um batólito mágico, saído das profundezas dos dois rios que a cingiam e se enroscavam em muitos abraços, pelas ruas e vielas. A cheia, acantonada entre os marcos da Praça, beijava o botaréu que servia de contraforte ao varandim, e já não permitia a ninguém passar a pé enxuto. Era um grande lago, onde gravitavam mansamente, abóboras e laranjas, envoltas em mantilhas de renda espumosa, que as ressacas empurravam para junto dos marcos onde se encastelavam, sepultando-os.

O Tejo, já sem margens, esparramava-se pelos nateiros. Raros tufos de laranjeiras e oliveiras, apareciam e desapareciam, para lá das varas vibrantes dos salgueiros, como se fossem cabeleiras de afogados, mas chegado à velha torre de menagem, emperrava assanhado, enchia-lhe os subterrâneos, de areia e pepitas, esgatanhava-lhe os vestígios da escada de caracol, e trepava-lhe até à janela, para desafogar as suas águas lodosas.
Na Rua de Traz da Igreja, onde antes só o Mestre Anselmo sapateiro rompia o silêncio com a sua voz avinhada, acompanhada do som do martelo sobre a sola, refugiavam-se agora os taberneiros com sua corte de bêbados e de “topa a tudo”, fornecendo o palco para as mais disparatadas previsões e profecias sobre a marcha do temporal e da cheia, e para apostas e disputas, com alguns muito lidos no Saragoçano e no Seringador. Os veteranos do rio contavam coisas mirabolantes ouvidas e vividas, evocavam o testemunho de gente há muito reduzida a ossos e a folhas de cipreste, como se ali estivessem presentes de barrete na cabeça, a coçar as suíças, e enchiam-se de cóleras, quando algum novato os interrompia.

O temporal não amainava. Golfadas de chuva chofravam-se contra as vidraças, e pela íngreme rua de S. Pedro, despejava-se uma ecoante cachoeira, sobre os cinquenta degraus da cadeia.
Na casa da Câmara, já insulada, mas com o primeiro andar bem acima do nível da água, o Joaquim Antonho, secretário, preparava-se para o que desse e viesse.
Na taberna do Rocha Pregos, ouviu-se o som cavo e longínquo de um trovão, como um arrastar de móvel em casa vizinha, e o tasqueiro e freguesia fincaram os olhos no tecto, como se das teias de aranha que dele pendiam, caísse a braveza da trovoada distante.
- “Mau Maria! Lua Nova trovejada! …, profetizou o Zé Bonito, franzindo as asas do nariz bourbónico, herança dos Albuquerques, e o Zé Latoeiro, embrulhou-se ainda mais na sua velha manta de pastor. O Furta-Gatos, entrou esgalgado, com o guarda-chuva aberto, rompendo caminho, sem mais cerimónia do que gritar: -“Arreda que te espeto!”, e o Zingalho, deu um passo ao lado para equilibrar o corpito trémulo, e arregalando os olhos atrofiados, remocou: -“Arre gaitas! Se não viro proa, abalroava-me!”, e o pedreiro, depois de sapatear com força no lajedo e de se espanejar como um ganso para sacudir a água, chasqueou, compondo as varetas deslocadas do sombreiro: -“Isto é que vai um tempo! Boa vida que te parto, alma!”
-“Pois é! Pois é!”, concordou o João Lobato, ali também de remissa, até que o tempo o deixasse pegar na enchó ou tormentar uma frincha de algum barco. E a cada tasquinhadela de figos secos que ia desenterrando da algibeira, separando-os das pontas de cigarro que vinham pegadas, ia murmurando: Pois é! Pois é!
-“Cá por mim tanto me faz que chova como faça sol!”, resmungou com voz pastosa o Zé do Cabo, estendendo o lábio inferior até ao bigodão orvalhado. –“Se faz sol, varro as ruas e enterro os mortos! Se chove, ando sempre num rodízio, às ordens de muitos patrões a um tempo!”, e voltando-se para o Paulino, rematou: -“E ao fim e ao cabo, chega a sábado, pago a Paulo e a Sancho, e fico a dever a minha fome a Martinho, e … sem dez reis para rabiar!”
-“Pois é! Pois é!” exclamou mais uma vez o Lobato

A enchente vinha agora a galope, sugando os marcos da Praça e agrupando os detritos boiantes, num tapete negro. Uma corrente furiosa e fugitiva, vinda do Tejo, atravessou-a e bifurcou-se pelas ruas de S. Julião e Misericórdia, inundando a Igreja e inflectindo depois pelas ruas e becos contíguos, antes de se abraçar ao Zêzere, para por fim retroceder, trazendo o que levara no seu giro e ensarilhando tudo num arquipélago flutuante.
Impelida pela corrente, cirandava o cadáver de uma mula branca, abaulado de inchação, com os dentes arreganhados como que a querer morder o trambolho da manjedoura onde vinha presa, até que o repelão de um redemoinho a enganchou na coluna do pelourinho, para aí ficar, qual balança oscilando no fiel, até nova sacudidela partir a corda, e cada coisa seguir o seu destino. A mula passou então a exibir-se num circo, ora rentando o varandim, ora seguindo à valentona pela rua da Misericórdia. Os garotos, capitaneados pelo vozeirão do Zé do Algarve, naquela alegria própria da idade, batiam asas por todas as ruas onde houvesse água para fazer navegar um barco de cortiça, ou enfunavam-se como garnizés na disputa dos melhores lugares, por cima das pipas para melhor observar as reviravoltas do muar, gritando na sua voz guinchada: -“Lá vem a mula! Lá vem a mula!”. Por fim, numa última exibição daquele bailado macabro, tal jeito lhe deu a corrente, que a todos pareceu impossível que um animal tão corpulento, tivesse entrado por uma estreita fenda, único vestígio da porta submersa da loja do Zé Maria, para lá ficar entalada por debaixo do sobrado a encher a rua de um fedor insuportável.

Quem dominava era o Tejo, que retinha diante de si, numa postura de humildade o Zêzere, convertido num grande estendal de flocos de espuma que, ao escorregarem para as águas raivosas do Tejo, engalfinhadas numa luta de polvos gigantescos, se enovelavam em monstruosas serpentes flutuantes.
Encostado à porta do Zé Condinho, barbeiro, o Mendes Passinhas, comodamente agasalhado no seu vultuoso capote à cavalaria, cravava os olhos sanguíneos em toda a barafunda, e com a boca invisível debaixo da farta bigodeira, sentenciou cheio de gravidade: -“Enquanto os rios trouxerem esta espuma, as águas não vão descer!”

Na Praça, ao crepúsculo, o lufa-lufa das mudanças abrandara, e os inundados debruçavam-se das janelas lançando olhares ao tempo, a tentar adivinhar se a noite que se aproximava, os iria fazer vergar os sobrados do andar superior, com a tralha dos primeiros andares.
Como a chuva parara, havia alguma confiança e descanso, mas nas ruas vizinhas do rio, onde a enchente já tocava o segundo andar, a faina mantinha-se, enjaulando e apertando tudo nos sótãos, tendo apenas de permeio entre a vida e a morte, as tábuas podres dos sobrados, que deixavam ouvir, três palmos abaixo, o gorgolejar das águas.
Aqueles trabalhos já os avós os haviam passado e, por isso, os moradores viviam noites lúgubres sobre estes abismos, convencidos de que estavam num baluarte inexpugnável. Só os que não tinham ali nascido, e aqueles cuja mobília não cabia nos sótãos, se mantinham no transbordo em canoas e barcaças.
Preso às grades da Cadeia (aquela cadeia que para honra da vila estava sempre vazia), cochilava o barco do arrais Pereira, recheado com a mobília do secretário da Câmara, onde se entrevia por debaixo dos oleados, baús encourados, gaiolas com canários e pintassilgos, de permeio com cadeiras e canapés, uma cabra, uma pipa com coelhos e até uma raposa presa a uma corrente.
Mais além o velho António Marau, há muito a morrer lentamente, decidira fazer a sua última mudança. As lágrimas do céu retumbavam lentas sobre o caixão e na cara bexigosa do padre Joaquim, com a batina a drapejar e os lábios em oração, enquanto o barqueiro sofreava a proa da barcaça em direcção aos sete palmos de chão sagrado, no alto da vila.
Da casa de primeiro andar do Joãozinho, só grimpava a chaminé, como uma torre de fadas, surgida no meio das ondas, e do telhado do Zé Viegas só restava a casinha de grilos que era a trapeira, onde o Pilhante, um gatarrão mais negro que o criado do Moncada, aparecia a tempos a incendiar os olhos doirados com o seu miar suplicante.

Finalizava o dia e tudo se ia diluindo na tristeza da noite. O vento canalizado pelas ruas, dava vozes misteriosas ao arvoredo, empolava as águas e enfunava o varino do Asas, no afã e acender os candeeiros de petróleo, espetados nas esquinas.
Na provisória Tasca do Bentes, o Zembarra, que viera lá do Vale do Mestre, onde os sobreiros servem de coro aos pombos bravos, amesendava-se a um canto, mirando os pés descalços, com o queixo sustentado no forcado de um cajado. Parecia um réu sem defesa, a aguardar a chegada do Reitor. –“Olha o vento como zune ali!” disse, apontando para a chaminé da padaria da Maria Joana do outro lado da rua. E aquela quentura que adivinhava do pão fresco, fê-lo exclamar quase num murmúrio: - “Quem me dera ser padeiro!”
-“Eu antes queria ser taberneiro!”, interrompeu o magarefe do Poita. –“Isto é que é grande negócio. Vender água àqueles que estão fartos dela! Não é verdade, oh Bentes! Não há vida como esta!”
-“Eu cá por mim”, aduziu o tasqueiro, tirando o lápis da orelha, - “queria ser escrivão da fazenda, para andar a geringonçar de bengala na mão!”, e empertigava-se como se estivesse a fumar um havano.
A lata girou de boca em boca, e quando chegou a vez do Jaques molhar a goela, limpou-a à manga do casaco, levantou-se como que a brindar, ergueu a cabeça de galo de quem ainda arrasta a asa às moças pataqueiras, e disse: - “Eu não queria mais que ser um gato!” e deu um ai que foi acabar dentro do copo.
Já o sino da cadeia avisava que eram horas de fechar, deixando o som a boiar nas casas esburacadas, quando o taberneiro de chaves na mão perguntou descarado: –“Então vocêzes não tendes famelga?”.

Com a noite foi-se a débil esperança dos inundados e dos que tinham coisas no varandim. A cheia deu um salto e a água irrompeu furiosa, chofrando-se contra as paredes e balançando a baralhada de barcos que se chocavam surdamente, fazendo retinir as suas correntes de ferro.
Os jorros de luz dos archotes iluminavam o esforço desesperado e o tresmalhar das coisas do varandim, e enchiam de reverberações as águas da Praça. Vultos iluminados pelos fogaréus, sumiam-se nas sombras e rodopiavam de sala em sala, de andar para andar, aos encontrões, empurrando mobílias ou transportando objectos à cabeça. Era mudar o que já tinha sido mudado, com paciência e rapidez, não fosse a calamidade reclamar mais do que aquilo que já tinha levado. Lampiões, lanternas, candeeiros e gazómetros, lucilavam neste vai-vem, ilustrando a doca improvisada da Praça e os buracos negros das janelas a engolirem as golfadas das águas que passavam correndo e se esbarrondavam nas paredes.

Da Igreja vinham as horas, que ficavam a besoar nos ouvidos dos que as contavam, ansiosos pela manhã que tardava. Às três da madrugada o vento amainou, amorteceram os tem-tens frouxos, e a cheia recuou, deixando nas paredes um bichanar de gravidade taciturna, para alívio dos que tinham já derretido todo o seu alento.
Por fim, não havia varandim ou qualquer outro obstáculo na Praça. Tudo era um grande palco, onde só o pelourinho espreitava com a sua esfera, como que a ordenar: - Aqui não se toca!”


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