quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Um secreto desejo


São um par atípico. Ele tem quarenta quilos, e ela mais de cem.

Ele é padeiro, tem o cabelo loiro e óculos de aros finos, que juntos à magreza e ao silêncio habitual, lhe aumentam a fragilidade.
Ela é analfabeta, trabalha a dias, mas tem um ar determinado. O cabelo negro e comprido, apanhado num volumoso rabo-de-cavalo, oscila-lhe em volta dos ombros, enquanto as palavras lhe saem fáceis pelas gengivas, guarnecidas pelos dois únicos dentes. Hoje vem de jaqueta azul eléctrico, com o fecho éclair semi aberto a salientar-lhe os volumosos seios, e com umas calças de fato de treino muitos justas, vermelhas com listas brancas dos lados.

Ele vem à consulta, para avaliar a situação clínica e receber medicação. Sentam-se e, de imediato, é ela que se chega à frente, pousa os seios na esquina da secretária, para desbobinar o que entende da saúde do marido, e, enquanto procuro as análises recentes no processo, diz-me aproveitando um silêncio:
- "Dra.! Eu quero engravidar!"
Num repente, aquelas palavras meio sussurradas, forçam o meu cérebro a um sem número de ligações, na procura da lógica daquela pretensão. “Ficar grávida?”. Ela é oligofrénica, já tem um filho de cinco anos, que só por sorte não é seropositivo e tem a sorte de se manter seronegativa. Agora diz-me que quer ficar grávida!!???
Olho para ele, na procura de uma palavra que me permita entender o comprometimento naquela loucura, e pergunto-lhe:
- "Então Sr. António, o que é que você acha disso?"
Ele encolhe os ombros e responde, com o ar desinteressado do costume: -“Eu estou a saber agora! ... ”
Não me conformo! Antevejo a caterva de problemas de mais um filho naquela família disfuncional, e viro-me para ela a lembrar-lhe tudo o já anteriormente ensinado, quanto aos riscos e exigências de uma grávida de um seropositivo: -“Então dona Graça! Quer ficar grávida e o seu marido não sabe? E ainda por cima na vossa situação!!?"
Ela endireita-se, faz um trejeito com o rabo-de-cavalo, e responde atirando-lhe o queixo: -“Dra.! Não tem que ser dele! ...”
...
Respiro fundo, numa pausa, para medir a situação, penalizando-me por não a ter já proposto para laqueação de trompas, e continuo.
- “Dona Graça! Eu vou escrever uma carta à sua médica de família, para o Serviço Social lhe dar uma ajuda!”
- "Dra!", responde com o desembaraço habitual, enquanto se empertiga e aponta a caneta na minha mão: – “Se vai escrever para eu ir fazer aquela coisa para não ter filhos, não pense que eu vou. Quem manda em mim, sou eu!”
- "Eu sei! Mas, se não se importa, leva-lhe na mesma esta carta. Está bem!"
História de A.S.

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