segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 38

 


O sol batia forte no átrio do recinto. Hipólito correu para a entrada à procura do fresco da sala, onde ainda se não iniciara sessão da tarde. No meio do palco, virado para o ecrã, que se estendia até ao topo do edifício, Júpiter de consola na mão, jogava um videojogo. Ao seu lado, Alexey Pajitnov, dava-lhe dicas para o ajudar a organizar as peças que caiam e se encaixavam junto à base. Ao ver Hipólito aproximar-se, justificou-se:
- Estamos aqui a aproveitar o intervalo para testar o meu novo jogo! É como o Tetris, mas agora tridimensional e virado para a economia! As peças representam as “commodities”, isto é, as mercadorias, e o jogador tem de as encaixar nos países que as importam, tendo em consideração as “tarifas” a que estão sujeitas. Júpiter já acertou com algumas, mas como tudo está tremendamente dinâmico, nem ele, que é um deus, consegue ser suficientemente rápido!

Júpiter cutucou-o, como a pedir nova ajuda e ele respondeu prontamente: 
- Cuidado com o Café da Colômbia que vai para os USA. Tem de rodar o mundo, depressa, porque as tarifas aí subiram 25%. É melhor mandá-lo em direcção à Europa. Falhou!, riu-se condescendente com Júpiter que suava ao ver descer o Ferro do Brasil também em direcção aos USA.
- Rode o mundo outra vez!, gesticulou Pajitnov. – Mande-o para a China! Isso! Isso! Boa!
Agora era o vinho Bordeaux que descia, seguido do Cobre do Chile. Júpiter fez tudo para os encaixar na China, mas não foi a tempo e um grande “Game Over!” surgiu no écran.

Júpiter recostou-se, rindo. - Este jogo é levado dos demónios! No princípio foi fácil, quando desceram as terras raras. Há poucos a usá-las. Mas quando foi preciso colocar o Ferro da Índia, do Brasil e da Rússia, começaram as complicações. Oh Pajitnov, este jogo é impossível enquanto as taxas que todos querem pôr sobre as mercadorias dos outros não estabilizarem. É que não dá tempo para nos organizarmos!

Entretanto chegara gente e a sala compusera-se. Júpiter evaporou-se e, na mesa surgiram o Papa Francisco, o Dalai Lama e o Aiatola Ali Khamenei. O tema da sessão era “Como influenciar multidões com frases simples”. O Dalai Lama invocou os 89 anos e a viagem para se limitar a repetir a dúzia de frases “espirituais” já conhecidas, o Aiatola Ali Khamenei, mal se sentou, adormeceu e o Papa Francisco, às primeiras palavras, ficou com falta de ar e a sessão teve de ser interrompida para o levar para o hospital. O Dalai Lama fez questão em o acompanhar, e o Aiatola, que estava espapaçado na cadeira, foi levado ao colo, por um segurança vestido com uma burka, para um cadeirão ao fundo da sala.
O médico disse para consigo, enquanto folheava o programa: - É gente demasiado velha para estas andanças, ainda por cima com sequelas graves de atentados. Devem ter sido convocados só pelo prestígio! Até aos 80 anos, muitos ainda se aguentam, mas depois é difícil encontrar quem ainda mantenha a energia necessária para lutar por soluções adequadas aos novos tempos. Os que se mantêm, arrastam-se no meio de sequazes temerosos que uma nova liderança os retire do poder.

A sessão seguinte era sobre o “Secularismo” e Hipólito não a queria perder. Enquanto aguardava, fechou o programa e os olhos para acabar a sesta que tinha interrompido.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Para sempre

 

… Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a frase, e foram felizes para sempre, isto depois do Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas e a vida continua, e os dois são infelizes até se separarem. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância, lá na Gabela, durante as férias grandes, enquanto tentava construir uma cabana nos troncos de uma acácia. Fui feliz para sempre nas margens de um riacho, uma corrente de água tão humilde que dispensava o luxo de um nome, embora orgulhoso o suficiente para que o achássemos mais do que simples riacho - era o Rio. Corria entre lavras de milho e mandioca, e íamos para lá caçar girinos, passear improvisados barcos a vapor, e também, à tardinha, espreitar as lavadeiras a tomar banho. Fui feliz com o meu cão, o Cabiri, fomos os dois felizes para sempre perseguindo rolas e coelhos através das tardes longas, jogando às escondidas no meio do capim.

in "O vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 37

 

“Não é o homem que escolhe o seu destino. É o Destino que escolhe o homem. A tragédia, por mais paradoxal que pareça, provém, não dos pontos fracos do protagonista, mas dos seus méritos. As pessoas são empurradas para a tragédia, não pelos seus defeitos, mas pelas suas virtudes. É uma suprema ironia que o descalabro tenha origem, não na preguiça ou na estupidez, mas na coragem e honestidade”. Hopolito tinha sublinhado este pequeno texto, num dos livros de Haruki Murakami.

Putin vinha de uma série de vitórias no campo político, económico e até social e recusava qualquer compromisso que pusesse sombra na sua aura. Hipólito estivera atento às leis rígidas adotadas pelas autoridades russas em 2003, que fizeram cair de forma significativa o número de mortes relacionadas com o álcool em todo o país. Durante as décadas de 1990 e 2000, o país viveu uma "crise de mortalidade". Nessa época, metade dos homens em idade produtiva morria prematuramente por causa do álcool. Entre 2003 e 2016, segundo a OMS, o consumo por pessoa caiu 43%, e, como médico, considerava tal facto um feito histórico, mesmo sabendo que os números por si só não especificam nada e que tudo depende do que fazemos com eles.

Hipólito tentava ver para além da encenação de cada actor. Considerava-se um homem de ciência com obrigação de sondar para lá da interpretação “óbvia” dos fenómenos.

Reviu os dados deste jogo: Os EUA têm uma população de 345,5 milhões, os russos são 143,60 milhões, na União Europeia há 449.2 milhões. A China tem 1.600 milhões.
O PIB dos EUA é 10 vezes o da Rússia e 1,5 vezes o da União Europeia e da China. O PIB per capita, do Estado mais pobre dos EUA é superior ao das cinco principais economias da Europa, com exceção da Alemanha. O PIB per capita da Rússia, pouco maior é que o da Bulgária, um dos países mais pobres da Europa. Os EUA investem 3.4% do PIB em Defesa. A Rússia 5,9%. Os países da União Europeia menos de 2%. A China 1,7%.

Estes eram os números que Trump tinha por maus e que considerava necessário alterar para os USA serem “great again!”, de acordo com o “senso comum” da elite que o rodeava, arriscando atritos com os aliados tradicionais e criando desconfiança, quando ela é a base de qualquer "negócio". 
Não ter em consideração a “marca” “made in USA”, parecia-lhe um enorme erro estratégico. A resposta ao bullying do Alan Musk, era já evidente na Europa, onde a Tesla vendera 50% menos automóveis, em Jan/2025 que em Jan/2014. Se ele tivesse em conta que a publicidade é a parte mais cara de um perfume, talvez não levantasse tanto a voz contra situações que só existem por uma questão de prestígio.

Mas o melhor era não fazer prognósticos neste jogo “muito dividido”, como falam os comentadores de futebol. E foi com estes pensamentos que regressou ao quarto para uma sesta, antes da sessão da tarde.
Cochilava há meia hora quando sentiu um vento azulado passar-lhe pela fronte e topou Zeus a entrar, suavemente, por uma das paredes.- Olá meu amigo!, disse o médico. - Então veio acordar-me, com medo de que eu não comparecesse à sessão da tarde?

- Nada disso!, respondeu Zeus. - Vim para me despedir! Diziam que os meus deuses eram instáveis e imprevisíveis, mas foram eles que deram as bases para a vossa civilização. Agora os dois deuses com maior cota no mercado, ou andam distraídos ou desactualizados. O dinheiro é o novo Deus! Tu já viste o poder que Trump tem nas mãos  para fazer subir ou descer as acções na Bolsa de Valores em qualquer parte do mundo? Se ele te dissesse o que vai dizer à sexta feira, depois da Bolsa fechar em Nova York, tu podias apostar uns 10.000€ no efeito das palavras dele e, dois dias depois, estavas a receber uns 200.000€. Ele a ti não te diz mas, de certeza, que diz a quem lhe está mais próximo. E os investimentos nesse jogo são, por certo, muitíssimo maiores. Não quero estar por perto quando o mundo se revoltar. Se não for um Armageddon, vai ser coisa parecida! É que no “mercado de valores” o medo é contagioso e o ladrar faz mais mossa que a mordida!

Despediram-se com um até um dia, na certeza de um reencontro. Hipólito, arranjou-se. Estava atrasado para a sessão da tarde.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 36



Putin, fora informado tardiamente daquele concílio. Alterara a sua agenda, mas contratempos de última hora tinham-no retido em Moscovo e chegava atrasado. Olhou para as cadeiras mais próximas. Na segunda a contar da coxia reconheceu São Nicolau em vestes episcopais. Putin interpelou-o: - O Trump apareceu aí?. São Nicolau fez um resumo do que se tinha passado e aconselhou-lhe calma, lembrando que comportamento gera comportamento e que o “Soft Power” é uma realidade. Putin olhou para ele de soslaio, e resmungou entre dentes: - Queres lá ver este vendido à Coca-Cola a mandar bocas, armado em Secretário de Estado. Lá por ser Santo Padroeiro da Rússia não está autorizado a “bitaites”!, e desceu lentamente até à primeira fila. Sentou-se, provocador, abriu o casacão e retirou de lá uma AK47 que colocou na cadeira ao lado

Quando o deus Polinésio terminou a comunicação, Guterres fechou a sessão da manhã e a sala esvaziou-se lentamente. Putin manteve-se sentado. Hipólito desceu ao seu encontro, com o bloco de notas, qual repórter da agência internacional e questionou-o: - Sr. Presidente: Será possível uma pequena entrevista? Prometo não o demorar mais de 15 minutos!

Hipólito queria perguntar porque é que Rússia, o país com maior território do mundo, diz que a perda de influência na Ucrânia põe em causa a sua “existência”? Porque é que possuindo enormes reservas de petróleo (é o 6º maior produtor), tem um PIB per capita inferior ao da Bulgária? Porque é que a Rússia investe na Defesa 4,3% do seu PIB? e se pensa ter condições económicas para resolver os problemas que causou com a guerra na Ucrânia?

Putin, assim que o sentiu aproximar, levantou-se de um salto e correu até à porta por onde Trump saíra e encontrou-o a assinar uns livros pretos A4, que entregava, junto com a caneta, a um dos seus secretários. Trump levantou os olhos, sorriu-lhe e levantou-se para o cumprimentar efusivamente. – Ora, ainda bem que veio! Estou aqui a assinar uma papelada, para dar nova ordem ao mundo. Aquilo que se fala muito nos últimos tempos: a Nova Ordem Mundial! Já me dói a mão e ainda tenho aquela resma ali em frente e estas duas caixas de canetas aqui ao lado!

Putin, sorriu condescendente, e, certo de que aquela euforia, mais cedo ou mais tarde, ia dar para o torto, respondeu: - Eu vim cá mais para ouvir, que para falar! Já me contaram a sua intervenção. Concordo plenamente! Isto é para quem tem unhas! Pelo meu lado, desde que assumi o poder que não as corto!, e estendeu as mãos para as mostrar. Eram grossas e afiadas. Trump abriu uma das gavetas, tirou umas luvas com garras, calçou-as, retrucando: - São indestrutíveis! Com elas posso rasgar o canal do Panamá, puxar a Gronelândia e o Canadá para dentro dos EUA, fazer uma Riviera em Gaza e até apontar novos caminhos ao povo chinês!
E no que respeita à Rússia? Perguntou Putin.
- Isso ainda não decidi! Tenho de me informar da importância das "terras raras" da Ucrânia nos negócios! Só depois é que me pronuncio.
- Mas olhe que essa a zona mineira já foi conquistada por nós! Replicou Putin.
- Não se preocupe! Se necessário, nós compramos e vocês vão ter que vender! A bem ou a mal!

Hipólito tinha ouvido que chegasse. Virou costas e pensou: Estamos a um passo de uma tragédia. Poucos sabem afrouxar os seus ímpetos na plenitude das suas vidas! O mais frequente é que a ansia de novos triunfos, os conduza à autodestruição.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Lembranças do Olimpo - 35



 Hipólito não tinha novidades e Harari riu-se, enquanto lhe dizia: - “São insondáveis os caminhos do Senhor!”, é o que dizem os padres católicos. Mas sempre assim foi! Nem nos Oráculos os deuses revelam o futuro. Quando dão umas dicas, fazem-no pela boca de uma Cassandra qualquer que esteja disponível! Hipólito concordou, embora tivesse alguma esperança que alguma luz pudesse sair daquela reunião. 
O palco movimentava-se para a nova comunicação, quando, quatro filas à sua frente, um estranho borburinho lhe chamou a atenção. Uns cabelos louros, saltavam sobre as cadeiras, em direcção ao palco, atropelando quem estava pelo caminho. Ao chegar à borda do estrado, apoiou a barriga, alçou uma perna e rolou até se levantar com as mãos no ar, gritando “America first!” Hipólito, virou-se para o lado como para confirmar: - É o Trump!? Eu não vi o nome dele na convocatória! Nem o dele nem o de Putin! Como é que está aqui? Harari respondeu: Deve ter sido o Elon Musk que o trouxe, à socapa! Ou então foram os Evangelistas, que essa gente está numa de “poder”, como nunca, e ele dá-lhes corda, porque necessita de um deus com aquelas características, pelo menos, por uns tempos. 
Entretanto, Trump empurrara o assistente que estava a configurar o laptop para a comunicação seguinte e tomara o púlpito, surpreendendo a mesa onde estavam sentados António Guterres, ladeado por Shiva, o deus da destruição dos Hindus e por Nossa Senhora, mãe de Jesus. 
Shiva, levantou-se disposto a acabar com aquele intruso, Nossa Senhora interveio, lançando um milagre protector e António Guterres, conciliatório, deu espaço a Trump na expectativa de que seria desta que ia conseguir a quadratura do círculo. 
Trump levantou o punho direito, sorriu para Elon Musk, que estava na fila da frente e dispôs a enfrentar o silêncio sepulcral que dominava a surpresa, quando se ouviu um imenso trovão e Zeus, que até aí se mantivera incógnito, cresceu num azul metálico cintilante, espetou o raio na parede oposta e dirigiu-se a Trump, petrificado com as chamas que ameaçavam incendiar-lhe as roupas. 
 - Ouve aí, Oh Caramelo! Quem é que te julgas? Um “Fidel Castro” de direita, com uma crença “religiosa” nessa verdade que é o liberalismo, disposto a tudo para levar a cabo os teus intentos, sem noção de que uma democracia onde a maioria exerce o poder sem restrição é tão tirânica como uma ditadura, principalmente quando se possui a arte de despertar o instinto da “caça às bruxas” que existe na multidão? Olha que há mais vida para além do orçamento, como dizia o Jorge Sampaio. A luta pela “eficácia” a qualquer preço e o “America Great Again” não fazem sentido. E voltar a um passado de potência hegemónica é um “You can make it, if you try!” para fãs! Não é política para um mundo onde é necessário considerar o efeito real das normas que se promovem e não o efeito que teriam se fossem completamente eficazes. Nem sempre a “honra” tem um preço. Os EUA têm de assumir-se de outro modo. O “liberalismo” sem controle não deve ser o seu objectivo. Existe “negócio” quando ambas as partes ganham, caso contrário é exploração! 
Trump, que se mantinha colado à parede, de olhos muito abertos, apesar das chamas se terem extinto, acenava a Nossa Senhora a pedir que o deixasse usar da palavra. Zeus topou-o e dirigiu-se então à mesa. - Como patrono dos grandes filósofos do Ocidente, não podia deixar em claro esta intromissão de quem se arroga presidente da nação mais democrática da Terra. Aproveito também para chamar a atenção ao sr. Guterres, secretário Geral da ONU, que o devia ter posto, de imediato na rua. Mas, agora, se é intenção da mesa dar-lhe a palavra, que assim seja!, e recolheu o raio para permitir que Trump se recompusesse. 
Trump assumiu o palco. Passou a mão pelo cabelo, levantou com menos convicção o punho, e iniciou a sua preleção: - Antes de mais, queria agradecer à Virgem Maria, a sua intervenção. É a segunda vez que sou salvo de um atentado e creio que isso é mais um sinal de que “God is on my side! Quero também agradecer ao Elon Musk, ao Mark Zukerberg e ao Jeff Bezos as tecnologias que, para além de permitem a entrada diária de enormes quantidades de dinheiro nos USA, deram uma grande ajuda à minha eleição como 47º presidente dos USA. A política é isto mesmo! E quem não tem unhas, não toca guitarra! “America first” é o meu lema. Mas não é para todos. É para aqueles que fazem falta à “Economia”, que essa é a verdadeira razão de tudo o resto. Se queremos uma sociedade florescente, há que comprar e vender diariamente, “tudo e mais alguma coisa” de manhã, à tarde e à noite, porque tudo se pode vender, até lugares em Marte  se o nosso querido Elon se dispuser a cumprir o seu programa espacial. Deus lhe dê longa vida! No que respeita ao resto do Mundo, quero lembrar-lhe que somos ricos e poderosos e que devem ter em conta os nossos interesses, porque, se não o fizerem, cá estaremos para lhes explicarmos as consequências. Dito isto abanou os dois punhos no ar e, com um sorriso geral para a plateia, virou costas e saiu por uma porta ao fundo do palco, onde Ronald Reagan o esperava batendo palmas. 
Harari virou-se para o dr. Hipólito: - Vou ter que sair! A vida em Israel está demasiado instável e a minha família necessita de mim próximo! Hipólito desejou-lhe boa sorte! Depois olhou para o relógio, e como passava do meio dia saiu para o terreiro à procura de um catering, quando topou um vulto vestido com uma pele de urso a dirigir-se à sala de audiências. Arrastava uma corda onde estavam penduradas dezenas de almas, que chocalhavam ao ritmo dos seus passos. Ao chegar ao edifício, parou para localizar a porta central e em largas passadas, aproximou-se. Hipólito conseguiu identificar algumas das almas mais próximas da cintura. Viu Prigojin, Navalny, Kristina Baikova, Grigory Klinishov e Igor Shkurko, outras estavam escondidas nas grossas dobras da capa e as que eram arrastadas pelo chão estavam tão deterioradas que era impossível reconhecê-las. Era Vladimir Putin  À sua passagem, os seguranças perfilaram-se, facilitando-lhe a entrada, no momento em que um deus da Polinésia titubeava o pedido de um lugar no Panteon celeste.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Os livros e a Helena


Os textos que se seguem foram escritos pela minha filha Helena, em finais de 2018, em resposta a um desafio de indicar 10 livros que nos tivessem marcado.

Tropecei neles, hoje, ao limpar o Mail. Não resisto a publicá-los, sabendo que eles já anda pela Net pela mão dela.

Antes de mais, e principalmente porque gosto de começar com declarações de firmes convicções, quero dizer que não só odeio correntes como até, à mais leve sugestão, amiga de 'Helena, sabes o que é que tu podias fazer?' o meu cérebro dispara, ainda antes de saber o que é 'olha, é exactamente o que eu não vou farei!' e assumo que sou teimosa como um burro. Ou o Toino. Assim, quando a Filipa, que sabe quem é o Toino, me sugeriu que eu entrasse no jogo dos livros, nomeando-me com o delicioso 'o caso das criancinhas desaparecidas' do não menos delicioso Luiz Pacheco, eu pensei 'vais ter sorte, vais...'
O problema é que eu odeio correntes e sou teimosa vários (diversos mesmo) degraus abaixo do meu amor aos livros e sendo que o amor e o ódio são a mesma coisa mas em sentido contrário, os livros ganharam.
No entanto, diz a corrente que não se deve explicar o porquê da escolha e apenas debitar 10 livros em 10 dias, mas a minha teimosia, na escala, é bem maior do que as regras do jogo e se quiserem 'exclassifiquem-me'!, que para mim, falar de livros é das coisas que eu mais gosto e este mural é meu e aqui sou eu que mando.
Tendo isto esclarecido - a teimosia, o ódio às correntes, o mau hábito de falar quando me pedem silêncio e o aviso de que este post tendencialmente pende para o longo - quero dizer que vou começar pelo início e que quem não tiver pachorra para ler, pode apenas olhar para a bela foto que tenciono tirar mais tarde deste belíssimo livro e seguir com a sua vida. Prometo não dizer nada de terrivelmente importante ou revolucionário ou sequer interessante (quem é que tem conversas interessantes numa 3ª feira à noite, anyway?!?)

No início eu não gostava de ler. Em primeiro lugar porque não sabia as letras (só na segunda classe me descobriram pitosga) e em segundo lugar porque a minha irmã mais velha queria, por essa altura, ser princesa (depois passou, felizmente) e, como tal, os seus livros que eu, como segunda filha, herdei, eram de princesas e eu era... digamos bichos e fato de treino, princesas e principes não me entusiasmavam.
A minha mãe cresceu numa aldeia, num tempo em que livros eram coisas de gente que não tinha nada que fazer e a minha avó não lhe dava descanso - quando não havia o que fazer a minha avó inventava - dar de comer aos coelhos, fazer um recado, tratar dos irmãos, arrumar a cozinha, ir à horta, um rol que não acabava nunca, como o pó - e os livros, pedidos na carrinha da biblioteca itinerante da Gulbenkian que passava na aldeia, que se chama Bairro, de seis em seis semanas à 5ª feira, eram a sua paz. Lia-os no quarto de banho, voraz, demorando-se porque a minha avó lhe perdoava a suposta prisão de ventre, deliciando-se com outros mundos que não as couves, a rega  e o pó. Por isso, a minha mãe adorava livros e não percebia como era possível eu não gostar deles. Todas as sextas-feiras íamos à Bertrand à frente da Matriz e a minha mãe dizia 'Lena, escolhe um! O que quiseres! Tantos livros, já viste? Há-de haver de que tu gostes.'
Este foi o primeiro. Fui eu que o escolhi. Tinha 7 anos e ainda hoje trago no coração a imagem da rosa amarela à janela - Eugénio de Andrade com ilustrações de Júlio Resende. Quem começa bem, raro se entorta e, no que toca a livros (só nisso!) muito me orgulho do percurso.
Eu hoje gosto muito de livros. Agora não posso comprar muitos porque a minha enfermeira querida me fez prometer que só comprava mais livros quando acabasse de ler 4 (específicos) dos 17 que tinha na mesinha de cabeceira, sob a pena de ter de lhe comprar 2 por cada que comprasse para mim - já levou com os 2 primeiros porque, no outro dia, não resisti ao 'o direito à preguiça,' mas estou em sérias negociações com ela. É que um dos 4 da lista é uma seca e eu entretanto já li outros 4 (fora da lista) e tenho esperança que a menção desta penosa situação faça o seu coração amolecer... (sim, Anabela?)
Enquanto cresci (sim, eu sei, pouco!) a minha mãe, que não nos dava tudo o que queríamos (o vício da música, por exemplo, saía-me da semanada), dizia que os livros eram os que eu quisesse. Ainda hoje, que lê menos - já não tem de se esconder no quarto de banho - regozija-se quando lhe conto as aventuras que ando a ler e quando me queixo do preço dos livros, ela ri-se e diz 'vá, eu pago esse, depois contas-me'.

Amanhã, ou noutro dia qualquer, quando me apetecer (é a coisa de isto ser o meu mural) falo-vos de outro livro. Se calhar não vou ter uma fotografia tão bonita. Gosto tanto de alguns livros que os faço circular em mãos nem sempre 'desinvejosas' e até este, depois de o passar à minha irmã mais nova e anos depois aos meus sobrinhos, encontrei-o de novo, talvez 30 anos depois, no consultório dentário da minha irmã mais velha (senhores, não só é um excelente sítio para tratar os dentes como tem excelente literatura na sala de espera) e só muito recentemente voltou à minha estante. Tenho, sinceramente, alguma esperança de que alguns destes 10 livros, às custas destes textos publicados, sem apontar dedos, voltem para mim. Se tal não for possível, não tem mal, foram bem emprestados.

Ai que me esqueci das nomeações... vai Ana! Conta-me (e já agora empresta-me) os 10 livros da tua vida, como fazemos tão frequentente, agora que deixaste a coisa de ser princesa!

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MACONDO, 'a aldeia de vinte casas de barro e taquara, construída à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos' onde aconteceram 100 anos de inacreditáveis acontecimentos, é o cenário do meu #2 livro da lista que dificilmente se ficará pelos 10.
O meu pai nunca soube que idade nós tínhamos e sacava livros da estante dos escritório com sede de nos ensinar tudo o que havia para ensinar, talvez achando que lhes sairíamos da mão demasiado cedo para nos sabermos proteger deste mundo estranho. Dava-nos os livros todos em catadupa. O meu pai ainda não sabe que idade eu tenho. E se em tempos me achou antecipadamente preparada para Gabrieis Garcia Marquez, Kunderas, Günter Grasses e outros, este ano ligou-me um dia à noite para pedir para eu não ler o 'quem governa o mundo?' do Noam Chomsky que me havia emprestado à tarde, com o argumento de que eu era demasiado nova para me desiludir com a estupidez do mundo. ()
Já para Macondo mandou-me quando eu tinha uns 13 anos porque nunca é demasiado cedo para se mergulhar no realismo mágico do Gabriel Garcia Marquez. Li os “Cem Anos de Solidão”, o “Amor em Tempos de Cólera”, a “Crónica de uma Morte Anunciada”, o “Outono do Patriarca”, “O general no seu labirinto”, “Do amor e outros demónios”, a “Aventura do Miguel Linttin” e os magníficos “Doze contos peregrinos”, tudo de rajada,  uns a seguir aos outros, continuamente a aprender que o mundo é muito mais do que os olhos vêem. Talvez esteja errada e a memória me atraiçoe, mas penso que durante mais de um ano não li mais nenhum autor. Vivi meses a fio dentro do realismo mágico por dentro e à noite fechava os olhos e encontrava aventuras com gelo, mortalhas, mulheres loucas descabeladas, quartos assombrados, calor tropical e Arcádios e Josés Buendias de 5 gerações,  prostitutas e galeões e fugas pela janela e pelotões de fuzilamento e Úrsulas e amores impossíveis.
Se eu fosse correcta a jogar este jogo dir-vos-ia que o livro a celebrar hoje seria os “Doze Contos Peregrinos”, ou mais especificamente o conto 'Só vim fazer um telefonema', que me marcou para sempre. Eu ainda não era louca, tinha 13 ou 14 anos e ainda não devia ter medo de um dia acabar compulsivamente internada por engano num hospício, mas os Cem anos de Solidão haviam-me falado do destino e eu vivia dentro daqueles livros.
O meu pai diz que ninguém foge ao seu destino e quem tem de morrer de um tiro não morre de uma facada e eu só descanso porque sei que a minha tia Lena me há-de salvar, assinando que é engano, que eu não sou louca e que foi só um furo no pneu do carro numa noite de chuva.
A delícia trágica deste livro, as bruxas e as loucas e os feitiços apaixonantes, as mil aventuras que cabem naqueles 100 anos de um mundo estranho fizeram a delícia dos meus 13 anos e dos meus 36, quando me deleitei a relê-lo.
Hoje fui a casa dos meus pais e, como é hábito, antes de sair, dei um salto ao escritório. A minha irmã entrou passados uns minutos. Disse-lhe 'não sei dos cem anos de solidão' e ela com um sorriso ' também dos teus? também vinha à procura dele para o "jogo", enquanto fotografava mais dois livros. Depois de desistir de o procurar, peguei em 3 livros para pedir ao meu pai e ela disse 'Lena, estes livros não são do pai. Isto é uma biblioteca partilhada! Não podes levar livros assim!.' Ela tem razão. Os livros que ali estão são de nós todos. Pedi-os emprestados e um foi-me recusado 'Ai Lena, não leves esse que acho que ainda não o acabei!' e eu 'oh pai!, tens de ler! É um dos meus favoritos.'
Os cem anos de solidão fui eu que perdi. Prometo, Ana e pai, repô-lo em breve, que a nossa biblioteca não pode passar sem ele.

Hoje a nomeada é a Joana, que tinha uma cábula para saber quem era quem nos Cem anos de solidão para não se perder na deliciosa malha do mundo mágico do Gabriel Garcia Marquez.

Ps - mas é só porque a tia Lena não tem facebook e eu não posso mandar a bola para ela. Mas posso pedir aqui para ela nos dizer quais são os 10 livros da vida dela, porque aposto que todos gostávamos de saber.

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Os livros são das coisas mais bonitas do mundo e eu não sei se vou conseguir explicar porquê - às vezes é muito difícil simplificar evidências. Ou qualquer outra coisa. Explicar coisas é muito difícil e os livros são objectos magníficos porque existem pessoas (os escritores) que se dispõem a oferecer um mundo que existe só dentro deles a um público que desconhecem e tirar coisas da nossa cabeça e fazê-las compreensíveis é uma arte.

Eu, com frequência, aborreço-me deste meu mundo. Viver todos os dias cansa, dizia o Pedro Paixão, mas eu estou convencida que é porque todos os dias vestimos a mesma pele, a mesma farda, a rotina das mesmas ruas e de todas as outras coisas que em tempos já foram novidade e que agora são só banais, como os cantos dos dias que já conhecemos de cor.

Ler é ensinar aos olhos outros mundos, vestir outras peles, morar em casas diferentes, acordar no Japão, viajar à idade média, ser rainha ou pajem e velho e homem e mulher ou criança, ser perverso ou anjo, metódico ou suicida e voltar para casa a qualquer momento, com a alma cheia de experiências novas.
O 'Em Nome da Terra' foi, que me lembre, o primeiro livro que me roubou a mim própria. É um livro de uma sobriedade brutal acerca do fim da vida, da decadência do corpo, das rugas e peles, dos falhanços, do viver à espera do fim já só agarrado às memórias que também já falham e às saudades do corpo jovem e do corpo jovem e das peles firmes da mulher que já morreu.
É uma história de amor e começa assim 'Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever.', que é uma das frases que se me colou ao peito para sempre.
Aos 15 anos tive rugas, reumatismo, uma perna amputada, vivi num lar e senti toda a tristeza do fim de mim - dor de costas, de fígado, de alma, com uma lucidez incrível. É uma experiência estranha aprender-se a ser velho por debaixo de uma pele ainda tão esticada e num corpo com articulações lubrificadas.

Este livro matou o meu medo da morte e ensinou-me a amar a lentidão dos gestos dos velhos e disse-me que tinha a minha vida toda pela frente e que a devia encher de amor e histórias para ter com que me entreter quando chegar o dia em que espero o fim, deitada numa cama só com as minhas memórias.