sexta-feira, 3 de julho de 2009

Eu de Psiquiatra










-"Oh Sr. Avelino, então você anda a ver bichos?",
pergunto, enquanto lhe disponibilizo a cadeira. Ele senta-se titubeante, com os dedos em pinça sobre o dorso da outra mão como a retirar linhas por lá pousadas, olha para mim, para se certificar da minha atenção, e diz:
-"Olhe aqui, … a cara de uma criança! e aqui … uma minhoca! Isto aqui não é nenhuma veia!” afirma com quem pergunta. -"Mas não tem problema, que eu vou-os tirando, e ... até me entretenho!", e levanta a cabeça para me presentear com um sorriso pastoso.
Ao lado, a mulher cansada de tanto repetir as mesmas coisas, ainda o tenta trazer à realidade:
-"Oh homem não digas isso, que tu há duas noites que não dormes por causa dos bichos que dizias que nasciam das paredes.
-"E estavam!", diz a marcar a posição. -"Eu vi-os!”, e para me lembrar das contrariedades a que um homem está sujeito, vira-se para mim de mãos abertas e eleva os ombros: -“Está a ver! É assim que nascem as paranóias!"

Hoje não existe psiquiatra na equipe de urgência que chefio. Sou eu que tenho de decidir quem fica para amanhã, quem vai transferido para observação urgente pela especialidade e quem pode voltar noutro dia.
Hoje vão ser onze. Este é o quinto. O maior problema dos homens é o álcool, o das mulheres "as depressões".
Negoceio soluções, já que muitos dos casos não constituem urgências.

Esta mulher, está determinada a por termo àquele desmando: -"Oh Doutor! Até tive de sair de casa e ir dormir para a roulotte, porque ele estava sempre a chamar, porque eu também tinha que os ver!”
Para tentar perceber o grau de disfunção, arrisco mais uma pergunta.
-"Então, se a Sra. foi para a roulotte, como é que sabe que ele não dormiu nada durante a noite?
E a pobre senhora a condescender, mais aquele pormenor:
-"É que ele apareceu lá, nem passava meia hora. Foi de cuecas pela rua, com o gato numa mão e um vaso da vizinha na outra, assim pela rua às 3 horas da manhã, os 100 metros entre a casa e o local onde a roulotte está estacionada".
-"E ficou lá a dormir consigo?"
-"Não, porque quando lá chegou também lá viu os bichos e quis voltar para casa".

Agora, viro-me para ele, para lhe entender a mente:
-“Olhe lá, e para que é que você levou o gato e o vaso?”
-“O gato era para que os bichos não lhe fizessem mal e o vaso era para afastar os bichos”.
-“Ah! e depois?”, e retomo a conversa com aquela senhora magra e bem vestida, que destoa ao lado dele, e que delicadamente me responde, sem restrições.
-“Depois Sr. Dr., na ida para casa, começou a dizer que via uns rapazes escondidos atrás das árvores, a rir-se dele. Mas não estava lá ninguém!”
E ele a interromper prontamente:
-“Estavam, estavam! Só que eles põem folhas em cima para se disfarçarem e ficam quietos como estátuas, para a gente pensar que eles fazem parte da árvore. São uns rapazolas! Fazem aquilo só para brincar. Mas estavam lá. Que é que tu estás para aí a dizer!”, emendava, enquanto ela retomava o discurso:
-“E depois Sr. Dr., pu-lo em casa e voltei para a roulotte e ele chamou a Polícia pelo 112, a dizer que estava a ser assaltado e, quando esta lá chegou, ele tinha uma pistola e uma faca da cozinha na mão e ficou a dizer-lhes que tinha prendido ali três moços que o tinham assaltado.”

-“Oh sr. Avelino! Você tinha-os preso?”, pergunto-lhe com o meu melhor ar de incrédulo.
-“Sim! Um era preto, tudo rapazes novos, deitaram ácido por baixo da porta e tiraram o canhão da fechadura. Levaram os 130 Euros que eu tinha no saco de plástico.”
-“Mas se você os apanhou, como é que o roubaram?”
-“É que um ficou cá em baixo, e eles atiraram-lhe o dinheiro! A Polícia levou-os, mas depois mandaram-nos embora e eles voltaram para roubar outra vez.”
Aí a senhora intervém de novo, a tentar salvar-lhe os bons princípios:
-“Não roubaram nada, nem havia moços nenhuns, Sr. Dr.. A pistola não tinha carregador! Ele tinha-a encontrado à beira da roulotte e estava para lá. Mas a polícia levou-lha!”

-“Sr. Avelino, você vai ter de ficar cá connosco!"
À procura de um rasgo de lucidez, endireita-se. -“Nem pensar! Eu esta noite tenho de ir vender para a beira da discoteca os cachorros e as bebidas. Hoje não fico!”, e tenta tirar a agulha do braço, enquanto a mulher o contém:
-“Oh homem, tu tens de ficar. Eu trato do negócio!”
O Sr. Avelino, com um meio sorriso condescendente repreende-a: -“Olha lá! Como é que tu levas a roulotte? Tu não tens licença. A licença está em meu nome!”
E ela, sem paciência para mais argumentos, a olhar-me com aqueles olhos de muitos anos de mau viver:
-“Oh Dr., ele não pode ir assim. Há dois dias que não tenho descanso!”

Assumo como meu todo aquele desespero, levado até ao limite da tolerância:
-“Sr. Avelino! Vamos combinar! Você toma uma injecção para limpar essa garrafa de whisky que bebe todos os dias, e depois vai embora! Está bem?”.

-“Está!”
...
Abençoadas benzodiazepinas de acção rápida!

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